Verdade inconveniente: setor de saúde ainda venera o papel

Considerando o número nacional de internações em 2021, cerca de 19 milhões (SUS e Saúde Suplementar), o setor hospitalar nacional consome, apenas no eixo das internações, cerca de 1,34 bilhão de folhas de papel A4, a um custo aproximado de R$ 340 milhões (podendo ultrapassar 1,73 bilhão). Mesmo com todos os ativos computacionais em uso (desktops, notebooks, smartphones, impressoras, redes de interconectividade, sistemas e aplicações setoriais e/ou hospitalares, IA, etc.) a cadeia hospitalar ainda se vê obrigada a gerar, armazenar e distribuir quase “40 páginas diárias por cada paciente internado”.

Da ‘documentação de entrada’ do paciente (RG, Carteira de Trabalho, CPF, Cartão e guia do Convênio, Prescrições, Laudos, Avaliação pré-anestésica, termos de consentimento, etc.) à ‘documentação intrínseca do hospital’ (AIH, prontuário do paciente, anamnese, evolução diária, prescrições médicas, avaliação pré-anestésica, relatórios cirúrgicos, resumo de alta, dados de catering, etc.), o setor consome só nas internações cerca de 134 mil árvores ao ano, sem falar, é claro, de outro brutal volume de papel gerado pelo back-office de cada entidade, que aqui não está contabilizado.

Mais de 6 mil hospitais nacionais, com poucas exceções, gravitam na quintessência cultural do setor: se puder imprimir ou copiar, faça-o. Abarrote os andares, acumule os SAMEs, lote as gavetas, escaninhos, empanturre aquelas pastas do século XIX (pretas, enormes, que acomodam uma centena de páginas) e mapeie a localização para as necessidades mais bizarras (incêndios, roubo de prontuários, má-fé de funcionários, enxurradas, etc.). Sim, claro, o judiciário pode solicitar nas ações em curso, e como ele, em geral, também ama o papel, não adianta armazenar em arquivos digitais…

Dois modelos de IA generativa, bem municiados com informações de 2021 (múltiplas fontes, mas todas confiáveis), realizaram essa pesquisa em pouco mais de 3 horas (sem papel). Certamente que o volume de sulfite consumido em internações tem múltiplos motivos, dos mais insubstituíveis (regulações, legislação, compliance, etc.), passando pelos mais ultrapassados (insegurança dos dados digitais, base de informações não-confiáveis, questões de interoperabilidade, legado de registros perdidos, etc.) até chegar aos mais arriscados e discutíveis motivos (medo da inovação, zonas de conforto, baixa hierarquia em transformação digital, manutenção do Poder, etc.).

A questão ESG é relevante, mas não é única. A inconsciência coletiva é pior.

Mais da metade de todo papel que circula dentro das empresas de saúde não tem nenhuma utilidade, pelo contrário: tem custo alto, desperdiça tempo e gera uma enorme precariedade operacional. Um paciente que precisa realizar um exame de imagem, e se dirige a um dos dez mais importantes laboratórios de análises clínicas do país, gera mais de 8 folhas de papel, incluindo cópias, impressões de docs, questionários preenchidos à mão, ticket de senhas, laudos, etc. Metade desse montante é por força de regulação e segurança do paciente, o resto é de uma inutilidade atroz. Cada folha de papel consome em média 30 segundos de recursos humanos. Na entrada da unidade de coleta dos exames, existem 10 baias de atendimento, com seus respectivos atendentes. Atrás deles, três gigantescas máquinas copiadoras emitem, sem parar, cópias de tudo aquilo que os atendentes registram de cada paciente.

Na sala de espera, mais de 60 pacientes aguardam, em média, de 30 a 40 minutos para chegarem aos pés do atendente (ainda longe das salas de coleta ou ultrassonografia). Como toda essa operação é orquestrada, todos são avisados a chegar pelo menos 30 minutos antes da hora agendada. Os pacientes aguardam sentados ou em pé, sempre utilizando seus smartphones para distração, irritação ou para comunicar alguém que está tudo atrasado. Enquanto isso, milhares de folhas de papel são geradas incessantemente, a maioria sem nenhuma razão (por que o paciente precisa levar para casa uma cópia dos exames que ele mesmo solicitou?).

Todos os atendentes zelosos e solícitos sentados nas bancadas não estarão mais lá em menos de dois anos. Serão substituídos por “agentes-artificiais”, embarcados em modelos de IA. Todavia, é muito provável que as mesmas copiadoras continuem vomitando cópias, agora, solicitadas pelos Agentes. Isso só revela uma relação de “papel-dependência”, ou até de veneração entre o setor de saúde e o papel. São inseparáveis.

Apesar dos avanços nos Registros Eletrônicos de Saúde (RES), ou da crescente usabilidade da gestão digital de pacientes, a grande maioria dos hospitais e clínicas ainda dependem dos fluxos de trabalho em papel, como admissão de pacientes, gestão de consentimento, laudos clínicos, etc. A “carga papelocrática” do paciente na entrada da internação traz morosidade ao processo, preenchendo vários formulários em papel até chegar ao leito. As equipes clínico-administrativas ainda inserem manualmente muitos dados, aumentando não só o tempo de processamento quanto a possibilidade de erros. Papéis são extraviados, esquecidos, duplicados, triplicados, exigem o dobro de esforço na tomada de decisão. Sem falar que um paciente internado é obrigado a repetir seus dados várias vezes pela baixa integração dos sistemas ou pelas “camadas empilhadas de comando”, sem que ninguém saiba bem quem manda ou quem obedece. Na dúvida, crie mais um registro em papel, ou imprima, copie ou mesmo faça anotações auxiliares em todos os cantos do documento. Sistemas baseados em papel não garantem a continuidade assertiva dos cuidados, mas fornecem álibis, “provas” ou defesas em caso de desconfiança de que “a minha papelada é mais importante que a sua”.

A praga mais comum e antiga são os ‘formulários de consentimento’, em geral exigidos por forças advocatícias que protegem os hospitais de seus pacientes. Por outro lado, a legibilidade de um documento em papel é um oásis para o erro, confusão e repetição. Não importa quem escreve: pacientes, médicos, enfermagem, familiares, etc. É provável que um bom “investigador de escritos” seja sempre requisitado, aquele funcionário que se acostumou a decifrar letras e garranchos em qualquer papel de circulação. Os Registros Clínicos em papel ainda se expandem por milhares de hospitais e clínicas do país. Mesmo que digital, a cópia em papel sempre parece necessária ao fluxo hospitalar. Trata-se de uma inconsciência tóxica e persistente. Um modo de ver as tarefas sob a ótica copista. 

Dados da pesquisa TIC Saúde 2024, mostram que mesmo com registros eletrônicos em 92% dos estabelecimentos no Brasil, cerca de 55% das informações dos pacientes ainda são mantidas simultaneamente em papel e meio eletrônico, sendo que 6% só em papel (apenas 37% dos estabelecimentos registram as informações nos prontuários dos pacientes unicamente em formato digital).

Mas não é só no Brasil, o mundo inteiro ainda tem uma formidável admiração pela papelaria informacional. Segundo relatório “2024 CAQH Index Report”, nos EUA, dos chamados “clinical attachments” (laudos, prontuários anexados, autorizações, etc.) apenas 32% são trocados de forma eletrônica; sendo que 68% ainda são transmitidos via telefone, correio, fax ou e-mail (não há uma padronização federal). Além disso, na ‘autorização prévia’, o telefone é o método mais comum e só 23% dos médicos dizem que seu EHR fornece autorização eletrônica para prescrições (o resto recorre a fluxos manuais, segundo a American Medical Association em 2024).

O Reino Unido e seu formidável sistema público de saúde (NHS), ainda luta arduamente contra a papelaria clínico-assistencial. Uma das prioridades do atual governo para o NHS England é incentivar a força de trabalho a reduzir a enorme circulação de papel que ainda navega pelo oceano de suas instituições. Treinar, treinar e treinar é a forma como o NHS pretende reverter esse quadro. O sistema britânico ainda “luta nas trincheiras do paperless”: em muitas áreas os registros médicos continuam em papel, mesmo com “90% dos fundos fiduciários do NHS (e fundos fiduciários de outras entidades) determinarem que até dezembro de 2023 todo e qualquer registro médico deveria ser só digital (95% até março de 2025)”. A sanha de um século de papel-hospitalar talvez precise de outro século para desaparecer.

Dados indicam que cartas atrasadas enviadas pelo correio são responsáveis ​​por 25% das consultas hospitalares perdidas no Reino Unido, incluindo consultas críticas, planos de tratamento e resultados de exames (a maioria depende ainda de selos postais). Listas de espera do NHS, que chegaram a 9,7 milhões de pessoas em 2024, ainda dependem de atrasos de notificações pelo correio (fonte: Escritório de Estatísticas Nacionais). Na rica Alemanha, mesmo após a obrigatoriedade em 2024 do E-Rezept (prescrição eletrônica), de 10 a 20% das receitas médicas ainda continuam sendo impressas em papel. No Canadá, perto de 29% dos médicos compartilham resumos clínicos de forma eletrônica, o restante depende de meios jurássicos, como fax.

Na Índia, a intervenção governamental passou a ser decisiva. Somente em 2019 foi inaugurado um hospital totalmente sem-papel (Instituto Sardar Vallabhbhai Patel de Pesquisa e Ciências Médicas), cujos médicos agora utilizam tablets em vez de pranchetas e esferográficas. No último mês de julho de 2025, um dos maiores hospitais acadêmicos do país, localizado em Belagavi (cerca de 600 mil habitantes), o KLES Dr. Prabhakar Kore Hospital (2000 leitos), anunciou dados extraordinários: o hospital utiliza cerca de 12,5 milhões de páginas de papel anualmente, o que significa mais de 1500 árvores sintetizadas todos os anos em folhas sulfite. Um colossal projeto foi iniciado para reduzir esse fardo, mas o curioso é que o hospital é um dos mais digitalizados da Índia, mostrando que a transformação digital por si só não garante o desuso do papel.

No final do século passado, a assistência residencial anunciou o “home care hospital”. A desospitalização, no início dos anos 2010, instituiu o “hospital sem tijolos” e a Covid-19 forjou o “hospital sem paredes”. Mas, quase meio século depois do início da digitalização hospitalar, o “hospital sem papel” (paperless) insiste em resistir bravamente à veiculação dos meios digitais, mesmo com cada indivíduo tendo seu celular como dispositivo cativo. Não se trata de eliminar o papel por “fadiga existencial”, ou apenas pela conveniência com práticas de sustentabilidade ambiental (ESG). Nada disso. Em muitos casos, a folha solta, física e escriturada a mão tem o seu lugar. O que atrapalha é o “vício papelocrático”, onde se imprime e se fotocopia por metodologia, por regramento infundado, por insegurança ao meio digital, ou simplesmente devido ao fato de: “por via das dúvidas, vamos deixar uma cópia”.

Um exemplo são as reuniões gerenciais/executivas, em que a pauta e os documentos (clínicos ou administrativos) a serem discutidos são previamente enviados por meio digital. Todavia, na data do encontro, todos levam uma cópia de tudo para “facilitar o debate”, isso quando os próprios protagonistas do encontro não deixam as cópias na mesa de reunião (“precisamos ganhar tempo”). Essa cólera burocrática inunda os ambientes assistenciais, que passam a ser reféns da cópia em papel.

A responsabilidade transcende a cadeia de saúde: o paciente é tanto ou mais culpado (ou refém) da papelada. No Brasil, estima-se que o consumo de papel por habitante seja de 50kg ao ano (fonte: PWC), o equivalente a quase uma árvore e meia de eucalipto (ou 10 mil-folhas de sulfite tamanho A4). As embalagens são hors-concours (mais de 60% de tudo o que é consumido), seguida dos materiais de suporte laboral (cadernos, folhas A4, blocos de notas, agendas, registros e uma infinidade de itens), ou seja, todo e qualquer material escriturário, que engole 25% de toda a celulose produzida. A consultoria Gartner também dá seu pitaco na algazarra papelatória: “em todo o mundo, aproximadamente 3% do lucro das empresas é destinado a papel, impressão, armazenamento e manutenção de documentos”. Além disso, ela especifica: 50% dos desperdícios das empresas são em papel (de acordo com Water Footprint Network, uma única folha de papel consome em sua produção cerca de 10 litros de água).

Você pode duvidar, mas nenhuma organização de saúde no Brasil, ou nos principais países do mundo, ainda prescinde do carimbo, que nasceupara validar o papel. Por exemplo:nosso Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) estabeleceu em maio de 2017 aResolução nº 545/2017, que define as normas para o uso do carimbo pelos profissionais de Enfermagem. Muitos outros documentos circulantes nos sistemas de saúde são dependentes de carimbo, como as Operadoras de Saúde, que exigem “carimbo do médico” em pedidos e relatórios.

O carimbo é mais antigo do que as múmias egípcias, mas seu uso nas instâncias de saúde ainda é febril. Na China, por exemplo, todos os “documentos de prova médica” exigem carimbo e selo oficial da instituição, sendo uma parte obrigatória do processo (além da assinatura do médico). O órgão máximo chinês na saúde (NHC – National Health Commission of the People’s Republic of China) determinou em janeiro de 2024 que cada documento tenha “carimbo” e que haja ‘gestão específica’ do uso deles (seja lá o que isso signifique). Na Índia, o Guia Oficial (2024) exige assinatura e carimbo do médico ou do hospital nos encaminhamentos/autorizações (CAPF). Na Indonésia, o mesmo: regulamento federal (MoH 2024) requer carimbo da unidade de saúde em qualquer cópia de prescrição e prontuário médico (mesmo eletrônico). Mesmo na Coreia do Sul, esfinge da transformação digital, há exigência de carimbo oficial do hospital em resultados de exames desde 2023. Lembre-se: onde há carimbos, há milhões de toneladas de papel. Um não existe sem o outro.

Em 2006, Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA, lançou o documentário “An Inconvenient Truth” (Uma Verdade Inconveniente), um filme que alertava sobre a crise do aquecimento global e os impactos das atividades humanas no planeta. A obra desmistificava o tema, apresentando dados científicos para mostrar a urgência de ações individuais e coletivas para salvar o mundo. Vinte anos depois do documentário, as emissões globais de CO₂ saltaram de 29 giga-toneladas/ano para 37,8 (2024), um recorde histórico. 2024 foi também o ano mais quente desde 1850, com +1,29 °C acima da média do século XX. Só nos EUA, o complexo de saúde gera quase 1 milhão de toneladas de papel/ano, respondendo por quase “um quarto de todo o lixo hospitalar”.

No fim dos anos 1990, ainda mergulhávamos ‘rolos de filme em banhos químicos para revelar milhões de fotografias em papel glossy’ (brilhante e caríssimo: uma única folha custava o mesmo que 23 folhas de sulfite comum). Duas décadas depois, captamos bilhões de imagens por dia, cada uma já parida em bits, sem exigir uma única grama de celulose. O digital alterou a cultura e o comportamento humano na captação de imagens, além de reinventar a memória coletiva. Nos hospitais, entretanto, a impressora laser ainda dita as regras do plantão (receitas, etiquetas, laudos, prontuários, autorizações, etc.) e o toner dita o ritmo. A verdade inconveniente não é o uso do papel na Saúde, mas o desuso da inteligência em estratificar a sua utilidade. Ter consciência é frequentemente uma condição temporária. Não desistir dela é o que nos torna conscienciosos, aqueles que são diligentes, atentos e que percebem, de súbito, a angústia do inconsciente coletivo.

Guilherme S. Hummel
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

Fonte: Saúde Business

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