Uma IA-escriba não me torna uma médica melhor, mas uma mãe melhor

“Ela acorda às 5h30 sem ter dormido direito: revisou prontuários até quase 1h da manhã porque o software do hospital público onde faz plantão é lento e obriga a revisar cada campo duas vezes. Prepara lancheira dos filhos, assina agenda da escola e esquece o bilhete de teatro do filho de 8 anos. No carro, ainda escuta áudio de pacientes pedindo renovação de receita. Das 7h às 12h, atende 13 consultas de clínica geral, cada encontro durando 10 minutos (mais 10 para redigir as anotações, copiar resultados de exames e caçar códigos de faturamento). Atrasa-se e não almoça. Às 14h, já no consultório particular, confunde “Clara” e “Clara Regina” no prontuário eletrônico, prescrevendo dose dupla de amoxicilina; à noite, descobrirá o erro e ligará angustiada para a farmácia. Já são 20h, quando assina digitalmente o último laudo e começa o “pajama time”: sentada no sofá, laptop aberto, tenta terminar relatórios sem perder de vista os filhos que disputam sua atenção. O de 6 anos insiste para que brinque de Lego; ela promete “só mais cinco minutos”, que viram quarenta. À meia-noite envia mensagens para a escola explicando a ausência no teatro e fecha o dia sentindo-se culpada, tanto como médica como mãe, por ter estado presente sem realmente deixar de estar ausente”.

“Dois meses depois, nos mesmos dois empregos, ela conta com uma IA-escriba clínica que capta a conversa com o paciente, transcreve e grava as anotações em tempo real. Cada consulta continua durando perto de 10 minutos, mas o registro já chega estruturado: diagnósticos, posologia, códigos CID/SUS e até sugestões de encaminhamento. Ela revisa, assina e passa ao próximo. O plantão da manhã termina às 11h40, sobrando algum tempo para almoçar e ‘vídeo-chamar’ os filhos. À tarde, no consultório, a IA sinaliza alergias na tela e evita a troca de nomes que antes resultava em prescrições erradas. O EHR+IA apresenta a hierarquia de casos: por gravidade, por cronologia e por pendências, mostrando também a ‘fusão’ do histórico do paciente com a última consulta dos pacientes antigos. A plataforma traz especificações sobre tendências, recorrência de sintomas, exames anteriores, medicações já utilizadas e conclusões periféricas. Ela escolhe 3 casos mais críticos e pede à IA estudos científicos e casos que configurem o mesmo quadro.  Às 17h30 desliga o computador sem levar tarefas para casa. No carro, conversa com as crianças, chega a tempo do ensaio de ciências do mais velho e ainda lê duas histórias antes de dormir. O cansaço continua porque a medicina é implacável, mas não há mais pilhas de laudos à noite, a culpa diminuiu, a pressão ficou gerenciável e o tempo roubado da família foi reduzido. Ela sente que atendeu melhor os pacientes e os filhos”.

Nas últimas décadas, a adoção digital mais rápida no ecossistema de saúde foi a do “AI-Scribe” (IA-escriba). Também são conhecidos como ADS (Ambient Digital Scribing), entre inúmeras outras denominações, como Assistentes Médicos Virtuais (VMAs). Hoje, qualquer modelo de EHR (registro digital do paciente) já “sai de fábrica” com as IA-escribas embarcadas. É provável que mais de 20% dos médicos das cadeias globais de saúde já as utilizem. São multimodais, multilíngues, multidisciplinares e conversam com humanos sem intervenientes. Sua estrutura só melhora em fluência, completude e factualidade. Transcrevem, diarizam dados, geram notas médicas e conversam com médicos de forma natural. De simples transcritores, tornaram-se sistemas inteligentes que entendem e organizam as conversas clínicas. Em breve, serão conhecidos apenas como EHR+, uma plataforma clínico-memorialista-conversacional, capaz de interagir com o médico de forma instrutiva e aconselhadora.

Sua aplicabilidade não traz só alívio cognitivo, mas também físico. Estudos apontam que as anotações de progresso clínico no EHR têm em média cerca de 700 palavras, variando entre 850 e 1.200 em especialidades de maior complexidade. Nos EUA e Canadá, onde o EHR é onipresente, um médico de atenção primária atende diariamente cerca de 20 pacientes, gerando entre 12.000 e 18.000 palavras digitadas por dia, o equivalente a 60 páginas de um livro (com 250 palavras por página). No Brasil, a realidade é ainda híbrida, com muitos consultórios mantendo o prontuário manuscrito, o que reduz o volume total de palavras diárias para 3.000 a 6.000, o que significa também maior quantidade de erros de escrita.As ferramentas IA-escriba poupam em média uma hora de digitação por dia aos médicos. Ou seja, não é só a carga de trabalho que esgota o médico, mas principalmente como ele a carrega.

Quase sempre o ‘esgotamento é um subproduto de ambientes disfuncionais de trabalho’. O cenário descrito nos dois parágrafos iniciais está presente na vida de quase 80% das médicas-mães com filhos até 12 anos. Não é diferente com o médico-pai, talvez só mais (erradamente) indulgente. Todavia, as IA-escribas clínicas não vão resolver os problemas individuais dos médicos se não for resolvido antes um problema sistêmico da cadeia de saúde: se ter mais tempo livre para o médico significa alocar mais pacientes, ou mais empregos, ou mais burocracia, os LLMs pouco adiantarão. Se o “sistema” (hospital, por exemplo) não aderir e promover a ‘escrituração em IA’, restaurando o tempo médico-funcional, os profissionais de saúde continuarão abandonando a prática clínica. O esgotamento e o distanciamento familiar existem porque o sistema faz do descanso uma recompensa e não um direito. Por outro lado, se o médico se resignar, achando que a vida é assim mesmo e a “sobrecarga cognitiva faz parte da função clínica”, ele também não está entendendo nada. “Resignação é suicidar-se todos os dias” (Balzac, 1799-1850).

O relatório “Adoption of Artificial Intelligence in Healthcare Delivery Systems: Early Applications and Impacts”, publicado em 2025 pelo Peterson Health Technology Institute (PHTI), identifica sinais francamente positivos na aceitação do “ambient scribe(ambiente automático de escrituração via plataforma de IA), tais como: (1) diminuição do burnout médico, problema que em 2023 já acometia cerca de 48% dos profissionais de saúde, impulsionado sobretudo por tarefas de registro funcional-administrativo; (2) redução da carga cognitiva extrínseca, pois o clínico deixa de alternar a conversa ambulatorial com digitação ou escrituração manual, concentrando-se mais no paciente; (3) melhoria da qualidade dos resumos clínicos, que se tornam mais claros e completos quando gerados pela IA e apenas revisados pelo médico; e (4) melhoria da experiência do paciente, que percebe consultas mais fluidas, com maior contato empático com o médico. Além disso, o relatório mostra que, ao atacar essas fontes de exaustão e ineficiência, o ambient scribe pode contribuir para mitigar a escassez projetada de 190 mil médicos nos EUA até 2037 (16% da força de trabalho).

Ao longo das últimas décadas, quando emergiu o ecossistema digital, médicos tornaram-se profissionais caríssimos, reduzidos a preencher formulários e clicar em EHRs. As próprias ferramentas de prontuário digital entraram no limbo do “agora vai, agora não”, pouco decolando nas cadeias globais de saúde. Isso está mudando rapidamente com o ‘atributo de escriba’ que os EHRs estão incorporando. Os “ambient scribes” são aplicações que escutam, transcrevem, analisam e geram anotações clínicas, disponibilizando tempo de cognição para refletir mais sobre o paciente e, obviamente, sobre sua família, filhos, etc. Dos mais sofisticados aos mais simplórios, o EHR contemporâneo (últimos dois anos), dotado de “escrevinhação automática” (AI-scribes), roubou a cena. A nova geração de EHRs, embarcados em IA, é capaz de aumentar o valor funcional do médico, como também reduzir o seu esgotamento atávico.

“Burnout” virou buzzword; um termo lançado despretensiosamente nos corredores de hospitais e webinars de saúde. Mas atrás do verniz cool está um colapso: exaustão física, emocional e cognitiva que brota da sobrecarga profissional. As IA-escribas podem ser um antídoto prático: “transcrever as consultas em tempo real e produzir uma anotação quase pronta corta em até 60% o tempo médico de digitação, devolvendo-lhe entre uma e duas horas por plantão” (fonte: Stanford Medicine). Esses transcritores inteligentes podem estar reduzindo o chamado “pajama time”, aquelas horas em que os médicos passam após o término oficial de suas funções clínicas (muitas vezes de pijama e até tarde da noite), preenchendo documentação e registros digitais (relatório do Medscape mostra impressionantes 62% dos médicos sofrendo de burnout gerado por sobrecarga burocrática). Com os LLMs, os ‘antigos transcritores médicos’ tornaram-se poderosos “dispositivos generativos” que não apenas transcrevem, mas também interpretam, resumem, sintetizam e adicionam significado à oralidade que ocorre entre o paciente e o médico (o estudo “Clinical Evaluation of Artificial Intelligence and Automation Technology to Reduce Administrative Burden in Primary Care”, de 2024, mostra que ‘escrivães de IA’ podem reduzir entre 70% a 90% do tempo gasto com burocracia).

Mesmo que o médico e os sistemas de saúde desconsiderem esses ganhos, eles deveriam considerar os aspectos econômicos das plataformas de IA-escriba: “1 em cada 3 médicos da atenção primária já experimenta essa ferramenta”, revela a pesquisa da Elation Health. Exemplos dos ganhos econômicos estão por todos os lados. O Permanente Medical Group (EUA), parte da Kaiser Permanente, economizou mais de 15 mil horas de documentação ao longo dos últimos 15 meses. Entre outubro de 2023 e dezembro de 2024, 7.260 médicos do grupo usaram a tecnologia-escriba para cerca de 2,5 milhões de consultas ambulatoriais, conforme o estudo “Ambient Artificial Intelligence Scribes: Learnings after 1 Year and over 2.5 Million Uses”, publicado em 2025.

A velocidade da adoção é única nas cadeias de saúde. No Canadá, o Cambridge North Dumfries Ontario Health Team (CND OHT), uma das equipes de saúde-integrada do governo de Ontário, utiliza a AI-scribe desde o início de 2025, atendendo mais de 3 mil consultas semanais. Os médicos já economizam mais de 530 horas por semana em tempo de documentação, sendo que 90% deles relatam níveis mais baixos de estresse e esgotamento, com média de “11 minutos economizados por consulta”. A maioria (70%) relata também que a ferramenta exige revisões mínimas e gera maior precisão e clareza nos registros clínicos. Vale lembrar que a introdução das IA-escribas em Ontário objetiva neutralizar um quadro sombrio: estima-se que até 2026, 4,4 milhões dos habitantes da província (uma em cada quatro) ficarão sem um médico de família (segundo pesquisa, 65% dos médicos de família da província se preparam para deixar de clinicar ou reduzir seu horário de trabalho nos próximos cinco anos).

Nesse sentido, o Canadá dispara vários projetos de utilização das IA-escribas. Em março de 2025, a Canada Health Infoway (“Infoway”) anunciou o Programa AI Scribe, uma iniciativa nacional projetada para reduzir a carga médico-administrativa e oferecer suporte a cuidados mais centrados no paciente. Serão mais de 10 mil médicos da atenção primária em todo o Canadá recebendo uma licença anual (totalmente financiada) para utilizar uma ferramenta de IA (pré-qualificada), voltada a automatizar o resumo de notas, documentar consultas e gerar resumos estruturados. No Canadá, 44% dos médicos sofrem de esgotamento, sendo que 51% dos que utilizam um EHR relatam passar duas ou mais horas em casa (após o expediente) preenchendo documentação e trabalho administrativo (fonte: Pesquisa Nacional de Médicos Canadenses – 2024).

Leia mais de Guilherme Hummel – Coordenador Científico da Hospitalar Hub

O avanço na adoção qualifica novas funcionalidades. No St. Luke’s Health System, em Idaho, EUA, já funciona uma IA-escriba (Ambience Healthcare) que fornece resumos completos de prontuários pré-consulta, expandindo o seu papel.  Ou seja, enquanto soluções de IA-escriba se concentram exclusivamente em documentar o que acontece durante as consultas, a nova plataforma (“Patient Recap”) posiciona os médicos antes mesmo dos pacientes entrarem no consultório.

O Skypoint Lia, por exemplo, é um agente de IA (EHR) que fornece “insights unificados e em tempo real sobre o paciente diretamente no ponto de atendimento”. Funcionando perfeitamente em várias plataformas (Epic, Cerner, Meditech, PointClickCare, etc.), ele sobrepõe-se ao EHR para exibir dados demográficos, informações sobre o pagador, lacunas no atendimento, DSSs e muito mais, sem a necessidade de integração ou interrupção dos sistemas existentes. Ou seja, ele apresenta um panorama completo do paciente aos médicos em segundos, impulsionando decisões mais rápidas. Já o Skypoint Scribe complementa o Lia, capturando e transcrevendo consultas com pacientes em tempo real. Ele elimina entradas duplicadas, extraindo das sessões detalhes clínicos importantes, como medicamentos, metas e diretrizes de cuidado.  

Em Cingapura, a escolha da IA-escriba clínica foi para a Medow Health AI. A decisão foi anunciada em julho de 2025, sendo a solução escolhida e totalmente alinhada à estratégia nacional de saúde digital do país. A plataforma faz tudo o que as demais fazem, com a diferença de que foi treinada exclusivamente em terminologia médica, com modelos afinados para múltiplas especialidades e templates personalizáveis que dispensam retrabalho manual. Para atender à diversidade linguística local, o sistema transcreve consultas em inglês, mandarim, cantonês, malaio e bahasa indonésio (com opção de habilitar árabe ou alemão e planos de incluir tâmil e híndi). Em poucos dias, 25 clínicas cingapurianas já adotavam o serviço, relatando ganhos de tempo e maior consistência das anotações. Toda a informação do paciente é criptografada e armazenada em servidores de nuvem sediados no país.

No Reino Unido, as ferramentas de IA-escriba são cada vez mais usadas pelo NHS. Em abril de 2025, o Departamento de Saúde e Assistência Social anunciou apoio aos médicos para adotar essas ferramentas, permitindo que eles “se concentrem mais em seus pacientes e menos na documentação”. Foi realizada uma avaliação multilocal, liderada pelo Great Ormond Street Hospital for Children, financiada pelo NHS England. O ensaio testou tecnologias de voz ambiente (AVTs) que ouvem e transcrevem consultas em tempo real. Mais de 7 mil pacientes participaram em diferentes contextos, incluindo atendimento de emergência, atenção primária, serviços comunitários e saúde mental. A plataforma Heidi Health, por exemplo, foi uma das escolhidas e já está sendo usada por mais de 40% dos clínicos gerais (GPs), com testes em 15 unidades do NHS. Ela fornece transcrição em tempo real, sem armazenar arquivos de áudio, a fim de atender às preocupações com a privacidade dos pacientes.

Dr. Andrew Noble, que trabalha no Jean Bishop Integrated Care Centre, em East Hull (UK),utiliza o Heidi em consultas que duram até uma hora, o que exige um longo tempo de escrituração. Ele explica: “Um ou dois pequenos erros podem ocorrer durante a transcrição de uma consulta de uma hora. No entanto, para consultas mais curtas, com duração de 15 minutos, os médicos podem esperar do AI-scribe anotações sem erros. O principal é a qualidade das anotações. Ele reduziu pela metade o número de erros ortográficos e também reduziu significativamente o número de abreviações”. Sempre é bom lembrar que médicos (humanos) erram consideravelmente em suas anotações e registros manuais (sem qualquer verificação posterior), embora haja pouca pesquisa na quantificação dessas falhas.

A exaustão clínica (burnout) e o afastamento familiar não recaem somente nas práticas ambulatoriais, mas também na tensão incessante do centro cirúrgico. Se as IA-escribas aliviam a fadiga cognitiva dos ambulatórios, quem reduz o “peso do bisturi daqueles que operam”? O estudo de 2024, “A systematic review of the prevalence of burnout in orthopaedic surgeons”, mostra em avaliação com 8.471 cirurgiões ortopédicos que 48,9% sofrem de burnout. Para a American Medical Association (AMA), 45,2% dos cirurgiões gerais têm pelo menos um sintoma de burnout. Nesse sentido, alguém poderia questionar: “quem alivia as pressões cirúrgicas?”. Trata-se de uma indagaçãopertinente, mas talvez com data de validade: pesquisadores da Universidade Johns Hopkins anunciaram em julho de 2025 um avanço histórico: desenvolveram e testaram um robô capaz de realizar cirurgias sem qualquer assistência direta de médicos. O Surgical Robot Transformer-Hierarchy (SRT-H) realizou com sucesso a etapa crucial de uma colecistectomia, adaptando-se a variações anatômicas e situações inesperadas em tempo real. O dispositivo utiliza uma arquitetura avançada de inteligência artificial, semelhante aos LLMs, permitindo-lhe “interpretar em tempo real” o contexto clínico e executar ações precisas.

O SRT-H foi treinado com vídeos de intervenções especializadas, aprendeu a identificar estruturas vitais, inserir clipes e cortar tecidos com grande precisão. O robô também é capaz de responder a comandos de voz da equipe (“mova o braço esquerdo” ou “agarre o colo da vesícula biliar”), ajustando seus movimentos de forma autônoma. Em linhas gerais, o SRT-H concluiu 17 etapas críticas de uma colecistectomia com 100% de precisão em modelos realistas (ex vivo), adaptando-se a variações anatômicas. Embora tenha levado mais tempo que um cirurgião experiente, apresentou resultados de qualidade equivalente, sem erros intraoperatórios.

Axel Krieger, líder do projeto, explicou: “Essa nova abordagem nos permite passar de sistemas que seguem planos fixos para robôs capazes de operar em condições do mundo real. Estamos ensinando um robô a navegar em qualquer caminho, não apenas em rotas pré-concebidas. Essa é uma distinção crucial que nos aproxima significativamente de sistemas cirúrgicos autônomos e clinicamente viáveis, capazes de funcionar em uma realidade confusa e imprevisível do atendimento real ao paciente”. Ou seja,em poucos anos, milhares desses devices estarão reduzindo filas de espera e mitigando a colossal pressão sobre os profissionais das artes cirúrgicas. Com a maturação do SRT-H e de fluxos operatórios dirigidos por IA, a mesma equipe que hoje realiza duas colecistectomias por turno poderá realizar até quatro em menos de 3 anos. Se as IA-escribas devolvem minutos preciosos às consultas, robôs como o SRT-H prometem devolver horas (e sanidade) aos centros cirúrgicos, atacando a mesma “hidra do burnout” em outro vetor clínico.

Um ponto importante na utilização das IA-escribas é a habilidade de cada médico em saber conversar e perceber as nuances do paciente. Sari Altschuler, especialista no ensino da língua inglesa, argumenta que a melhoria da qualidade do atendimento só será pertinente se os médicos desenvolverem novas habilidades de narrativa e edição. “As habilidades treinadas pelas humanidades, não apenas habilidades narrativas e editoriais, mas também história, ética e observação, serão essenciais para abordar as mudanças radicais na natureza do trabalho introduzidas pela IA”, explica Altschuler em seu estudo (“Clinician as editor: notes in the era of AI scribes”), publicado pela The Lancet. “Os pacientes contam suas histórias aos médicos. Os médicos contam histórias aos pacientes de outros pacientes. Anotações médicas são objetos profundamente narrativos. Quando as notas são produzidas por escribas de IA, os médicos devem pensar cuidadosamente sobre a mudança em suas funções de autores de notas para editores de notas”, explica ela.

Sim, será preciso que os médicos reaprendam a falar, questionar, dialogar e, principalmente, escutar quando utilizarem essas plataformas; ainda assim, não há nada que o próprio uso delas não enseje de forma autodidata. A IA-escriba não é outro médico fazendo anotações; é o mesmo, que de forma transcritiva dialoga com o paciente. Muitos clínicos que acompanham o doente há anos tendem a simplificar o diálogo, ou alongá-lo com divagações etéreas sem ligação real com as demandas do paciente. Tal atitude pode soar empática, mas também semeia imprecisões que se propagam para a IA. Médicos agora precisam descrever, não apenas escrever ou prescrever.

A equação do cuidado médico passa por uma transformação notável, deslocando-se da tese à antítese até alcançar uma nova síntese. Como a faísca que irrompe quando o aço encontra a pedra: “do choque entre o que se afirma e o que se contesta, nasce algo novo e luminoso”. Muitos relatam que a “medicina não é mais como costumava ser” e preferemo caminho da nostalgia, que pode ser agridoce, mas é paralisante. Para que clínicos de todas as especialidades, do centro cirúrgico ao ambulatório, encontrem tempo genuíno com a família, precisarão encontrar tempo para as máquinas de IA. Médicos devem buscar a melhor versão deles, não apenas a que sobrou. Enquanto o robô SRT-H realiza manobras delicadas e a IA-escriba captura cada nuance da anamnese, médicos podem recuperar minutos que antes se perdiam no cansaço cognitivo de “clicar ícones”. Viver mais com os filhos exigirá viver mais com os algoritmos.

Guilherme S. Hummel

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

Fonte: Saúde Business

Compartilhe este artigo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *