Em um hospital, o silêncio também fala. E, muitas vezes, o silêncio é cúmplice. Quando um profissional da saúde identifica um risco, um desvio ou uma possibilidade clara de dano e, mesmo assim, não age — por medo, rotina ou simples conformismo — ele se torna parte do problema. É duro afirmar, mas necessário: quem vê e não age, consente.
A gestão de riscos em saúde é muitas vezes tratada como uma área à parte, um setor ou um sistema. Mas os riscos não respeitam organogramas. Eles se escondem nos detalhes da rotina, nas micro decisões e nas falhas que aprendemos a ignorar. Por isso, a gestão de riscos deve ser uma cultura, e não um documento.
Riscos “invisíveis” que todos enxergam
Existe uma categoria de riscos especialmente perigosa: os riscos “invisíveis” que, na verdade, todos veem. São as medicações armazenadas incorretamente, os ruídos na comunicação entre turnos, os alertas de protocolos ignorados, as solicitações pouco claras. Todos sabem. Mas ninguém intervém. “Sempre foi assim” vira uma justificativa para o inaceitável.
Esse comportamento não nasce do descaso, mas da normalização da anormalidade. Quando a equipe se acostuma a conviver com o risco sem vê-lo como algo urgente, a cultura da segurança dá lugar à cultura do improviso. E o improviso pode ser fatal.
A falsa segurança do protocolo não aplicado
Hospitais com manuais impecáveis e fluxos validados também sofrem com eventos adversos evitáveis, pois protocolo não aplicado e gerenciado é ilusão de segurança.
Um plano de contingência que só existe na gaveta, um POP que ninguém revisa ou conhece, uma política de comunicação interna que não orienta o dia a dia — tudo isso transforma o risco em bomba-relógio.
O conhecimento precisa virar comportamento. E esse é um desafio comunicacional e educativo. O problema não é apenas ter protocolos, mas garantir que eles estejam vivos na prática assistencial e gerencial.
O papel do profissional como barreira viva
Muitos pensam em equipamentos, checagens duplas, sistemas informatizados. Mas a maior barreira de segurança é humana. É o técnico que confere a etiqueta antes de administrar. É o enfermeiro que questiona a prescrição com dúvida. É o fisioterapeuta que percebe que o leito está com inclinação incorreta. É o recepcionista que nota confusão no cadastro de dois pacientes. São ações simples que salvam vidas. A segurança está nos olhos atentos, nas mãos que interrompem e nas vozes que se posicionam.
Sabemos identificar riscos, então por que tantos não são evitados? Porque existem barreiras subjetivas tão perigosas quanto as falhas objetivas:
- Medo de retaliação: profissionais evitam relatar riscos para não serem responsabilizados.
- Cultura punitiva: ao invés de incentivar a melhoria, o erro é punido.
- Descrença no sistema: as pessoas acham que nada vai mudar, então preferem não se envolver.
- Fadiga e sobrecarga: a rotina exaustiva rouba a atenção e a energia para agir com vigilância.
- Falta de escuta institucional: profissionais não se sentem ouvidos, então silenciam.
Mudar isso exige liderança ativa, escuta qualificada e políticas que incentivem as boas práticas. A comunicação é o principal vetor para transformar percepção em ação. Profissionais precisam se sentir seguros para falar, relatar, questionar e sugerir. Isso só acontece quando:
- Há canais claros e acessíveis de notificação de riscos;
- A liderança acolhe e devolve resposta às sinalizações;
- Existe rotina de rounds de segurança e discussões francas;
- O erro vira aprendizado, e não punição pública.
Ambientes que não permitem o diálogo cultivam o silêncio — e o silêncio permite o dano.
Quando o erro acontece… Ele já foi anunciado
É comum, após um evento grave, ouvir frases como: “Eu já tinha percebido que isso podia acontecer”; “A gente vinha alertando sobre isso há meses”; “Era questão de tempo.” Essas frases são retratos dolorosos de falhas anunciadas. O risco já havia se mostrado, mas não houve resposta. Prevenir exige não só enxergar o risco, mas agir sobre ele.
Como fortalecer essa cultura do agir?
- Treinando a vigilância ativa: sensibilizações, simulações realistas, rodas de conversa. Ensinar o olhar crítico.
- Recompensando atitudes preventivas: reconhecer quem age antes que o erro aconteça.
- Formalizando canais de escuta e relato: plataformas de notificação anônima, devolutivas claras.
- Transformando erros em histórias de mudança: storytelling institucional com foco em aprendizagem.
- Envolvendo a alta liderança: quando a alta direção fala (e age) sobre segurança, o exemplo ecoa.
A coragem de agir muda histórias: seja a barreira!
Na saúde, agir é um ato de coragem. Não é fácil parar uma rotina intensa para alertar sobre algo que ainda não aconteceu. Cada pessoa, em qualquer nível, tem a oportunidade diária de ser a barreira que faltava entre o risco e o dano. Basta ver e não consentir. Basta enxergar e escolher agir.
No fim, a verdadeira gestão de riscos não está só no que a instituição publica, mas no que cada profissional pratica quando ninguém está olhando. E é nesse momento que o cuidado se torna real.