A Estônia, um pequeno país báltico com apenas 1,3 milhão de habitantes, tornou-se uma referência mundial em digitalização de serviços públicos. No setor de saúde, a digitalização é considerada um case a ser seguido, especialmente pela forma como o país conseguiu integrar dados, oferecer transparência aos pacientes e manter altos padrões de segurança.
Durante o Healthcare Innovation Show (HIS) 2025, em São Paulo, Tanel Tera, chefe do Departamento de Gestão de e-Services no Centro de Sistemas de Informação de Saúde e Bem-Estar da Estônia, compartilhou a trajetória estoniana e destacou aprendizados que podem inspirar outros países, inclusive o Brasil.
Um sistema único e interoperável
A digitalização da saúde na Estônia começou com uma decisão estratégica em 2008: centralizar os dados em um sistema único. “Desde o início, ficou claro que não fazia sentido termos informações dispersas entre hospitais e prestadores. Criamos um sistema central para que todos pudessem acessar os dados”, explicou Tera.
Hoje, todos os resultados de exames, prescrições, imagens médicas e registros de atendimento são armazenados em uma base central, acessível tanto para profissionais de saúde quanto para os próprios pacientes.
Além disso, a obrigatoriedade de envio de informações garante que o sistema esteja sempre atualizado. “Na Estônia, o Fundo de Seguro de Saúde não paga os prestadores caso os dados não estejam na base central. Isso força o fluxo de informações e mantém o ecossistema funcionando”, explicou.
Participação dos pacientes e usabilidade
O envolvimento da população foi um elemento-chave no desenvolvimento das soluções digitais. Tera contou que o novo portal de saúde foi testado por pessoas com deficiência visual antes de ser lançado. “Eles nos disseram que o portal antigo não atendia às necessidades. Recebemos esse feedback e adaptamos o sistema”, destacou.
Esse processo reforça a visão de que tecnologia em saúde deve ser construída em diálogo com usuários finais. “Nenhum serviço digital está realmente pronto. É preciso evoluir constantemente, entender o que pode ser melhorado e ouvir os pacientes”, afirmou Tera.
Transparência e segurança: quem acessa meus dados?
Outro pilar do modelo estoniano é a confiança. Todo acesso ao prontuário eletrônico é registrado e pode ser consultado pelo paciente. “Eu posso entrar no portal e verificar qual profissional acessou meus dados e por quê”, disse o palestrante.
A identidade digital única de cada cidadão e de cada profissional de saúde — válida em todos os serviços públicos — reforça a segurança. “Sem um ID digital, não é possível acessar dados de saúde. Não usamos mais usuário e senha”, explicou.
Lições aprendidas: liderança política e qualidade dos dados
A trajetória não foi isenta de erros. Tera destacou que, no início, a prioridade era coletar informações, mas sem foco na qualidade. “Isso foi um erro. Hoje sabemos que dados de baixa qualidade comprometem o uso clínico e secundário. Agora investimos muito mais para garantir dados de alto padrão”, afirmou.
Ele também foi enfático sobre o papel do governo na condução da transformação digital: “O principal fator de sucesso foi a vontade política. Sem liderança, nenhuma dessas soluções teria saído do papel. Os políticos estavam por trás da ideia de que precisávamos ser digitais e construir soluções melhores.”
Integração entre saúde e assistência social
Um dos próximos passos da Estônia é integrar ainda mais os setores de saúde e assistência social, criando uma visão unificada do cuidado ao cidadão. Tera trouxe um exemplo pessoal: “Uma pessoa próxima a mim sofreu um AVC. O médico a tratou e deu alta, mas ela precisava de serviços sociais. Queremos que essas duas áreas estejam integradas para que o cuidado seja contínuo.”
O objetivo é oferecer não apenas eficiência para pacientes, mas também simplificar a rotina dos profissionais. “Hoje, médicos gastam muito tempo navegando entre diferentes sistemas. Queremos soluções centradas também no médico, para economizar tempo e melhorar a experiência de trabalho”, ressaltou.
Inteligência Artificial: potencial ainda limitado
Apesar dos avanços digitais, a Estônia ainda enfrenta desafios na aplicação da inteligência artificial (IA). Tera foi crítico em relação à abordagem do país. “Na minha opinião, estamos sendo cautelosos demais. Temos medo das regulações e da GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados)”.
Hoje, o uso mais consolidado é em radiologia. “É a área onde vemos melhor aplicação. Mas temos um biobanco nacional com dados de um quarto da população. Poderíamos fazer muito mais se houvesse menos barreiras”, afirmou.
Um modelo em constante evolução
Tera finalizou destacando que a digitalização da saúde é uma jornada contínua. “Nenhum serviço digital está realmente finalizado. É preciso investir constantemente, ouvir usuários e adaptar soluções. Foi assim que, na Estônia, substituímos nosso antigo portal por um novo, mais intuitivo e acessível”, disse.
O palestrante reforçou ainda que a experiência estoniana não depende apenas do tamanho do país. “Desenvolver um novo serviço digital custa tanto em um país pequeno quanto em um país grande. O que faz diferença é a interoperabilidade e a forma como organizamos o ecossistema”, concluiu.
Insights: O que o Brasil pode aprender com a Estônia
- Interoperabilidade obrigatória – Prestadores só recebem se os dados forem enviados ao sistema central.
- Paciente no centro – Acesso total ao histórico e registro de quem consultou seus dados.
- Qualidade antes da quantidade – Dados estruturados e confiáveis desde o início.
- Liderança política – Avanço digital sustentado por visão de longo prazo.
- Integração saúde + social – Cuidado contínuo e apoio a populações vulneráveis.
O próximo Healthcare Innovation Show já tem data marcada, 16 e 17 de setembro de 2026, no São Paulo Expo.
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