O caso das gêmeas luso-brasileiras: o preço de ser jornalista entre Brasil e Portugal

Não é só sobre duas crianças luso-brasileiras diagnosticadas com uma doença rara.

Não é só sobre um medicamento que custa mais de dois milhões de euros por dose.

Não é só sobre um telefonema entre filho e pai, um pedido de ajuda que atravessou o Atlântico e chegou aos gabinetes da Casa Civil da Presidência da República em Portugal.

É, na verdade, sobre um mundo virado ao avesso, onde quem denuncia acaba na linha de tiro, enquanto os poderosos seguem intocáveis. E, agora, sobre um tribunal português que terá de decidir se expor um caso de interesse público é crime — ou se é simplesmente jornalismo.

Explico

Pouca gente fora de Portugal entendeu a gravidade do que aconteceu neste caso.

Tudo começou em 2020, quando duas irmãs gémeas, filhas de mãe brasileira e pai português, foram diagnosticadas com uma doença rara e degenerativa chamada atrofia muscular espinhal (AME). Uma sentença cruel que, em pouco tempo, leva à perda dos movimentos, da fala e, muitas vezes, da vida.

No desespero de uma família em busca de tratamento, surgiu um detalhe que levantou suspeitas e mudou o rumo da história: o acesso quase instantâneo ao Zolgensma, um medicamento experimental e considerado, na época, o mais caro do mundo — mais de dois milhões de euros por dose.

Enquanto outros pais aguardavam meses, até anos, por uma resposta do Sistema Nacional de Saúde Português (SNS), as gémeas atravessaram a fila como se houvesse um passe VIP invisível. Dias depois, começaram a surgir indícios de interferência política envolvendo o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza e seu filho, Nuno Rebelo de Souza— telefonemas, e-mails, pressões de bastidores. O caso ganhou manchetes, alimentou debates, e colocou em xeque não apenas a gestão da saúde pública portuguesa, mas também a ética dos que, de alguma forma, abriram portas em tempo recorde. Em um suposto escândalo de tráfego de influência.

O início da tempestade

Foi a partir daí que o barulho cresceu.

O nome do neuropediatra António Levy Gomes, profissional respeitado do Hospital de Santa Maria, surgiu como a voz dissonante: ele não quis compactuar com as pressões internas e denunciou o que via como uma interferência indevida no processo clínico.

A imprensa fez o que precisava ser feito: investigou. Televisões, rádios, jornais — todos mergulharam na história. Vieram à tona documentos, mensagens, testemunhos. A pressão foi tanta que o caso chegou ao Parlamento, resultando numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

No fim, como era de se esperar, o relatório concluiu o óbvio: houve intervenção política. Mas ninguém, absolutamente ninguém, foi punido. É sempre assim — quando os fios invisíveis do poder se entrelaçam, a linha da responsabilização se rompe no ar.

Cinco anos depois, o contra-ataque

Agora, em Agosto desse ano, as peças mudaram de lugar.

Daniela Martins, mãe das gémeas, decidiu contra-atacar: entrou na Justiça contra o médico denunciante e contra os jornalistas que expuseram a história. A ação, pesada, acusa-os de crimes como difamação, devassa da vida privada, exposição de dados sensíveis e até maus-tratos psicológicos contra as menores.

Os alvos são claros: o médico António Levy Gomes, a TVI, a CNN Portugal, a jornalista Sandra Felgueiras e o repórter brasileiro Nelson Garrone. O argumento é que as meninas foram expostas e que a família sofreu danos emocionais e sociais irreparáveis.

O que está em curso é uma tentativa de inverter os papéis: quem apontou os abusos agora é colocado no banco dos réus.

Quando denunciar vira crime

E é aqui que eu não consigo deixar de fazer um paralelo com o Brasil — e, mais do que isso, com a minha própria história.

Eu sei, como poucos, o preço de não se calar. Eu já fui processado, ganhei alguns processos, perdi outros. Paguei um preço alto por não aceitar me curvar ao sistema. Vi aqueles que um dia me deram carta branca e liberdade para falar as verdades que o povo precisava ouvir, se distanciarem e me deixarem sozinho na beira do precipício. Fui deixado na cova dos leões sem direito sequer à defesa.

Porque o que está acontecendo em Portugal não é novidade para nenhum jornalista independente no Brasil. Existe hoje uma verdadeira caça às bruxas contra aqueles que não pensam igual. O recado é claro: ou você se alinha, ou será esmagado.

O sistema é inteligente, corrosivo e cruel. Ele não vem de frente. Ele mina silenciosamente até te empurrar para um canto. E, quando você decide ir contra ele, você é aniquilado.

A nova geração e o velho sistema

Vejo, hoje, uma nova geração de jornalistas de peito estufado, defendendo pautas com garra, acreditando que a coragem basta.

De certa forma, eu me reconheço neles. Eu também já fui assim, já acreditei que a integridade e o bom jornalismo seriam suficientes para enfrentar o sistema. Mas a realidade é outra: o sistema não se importa com ética, não se importa com verdade. Ele só se importa com poder, custe o que custar.

Isso não significa abrir mão dos princípios. Os meus são inegociáveis. Ética, responsabilidade, verdade — doa a quem doer. Mas é preciso entender que esse é um jogo desigual.

E é nesse jogo que jornalistas estão sendo processados, calados, perseguidos — em Portugal, no Brasil, no mundo inteiro.

O preço de não se calar

O caso das gémeas luso-brasileiras é mais do que uma história de bastidores do poder. É um alerta.

Ele expõe o quanto a imprensa está acuada, o quanto o ato de denunciar — que deveria ser protegido — virou alvo de processos, intimidações e campanhas de desmoralização.

Eu aprendi que o problema nunca foi o silêncio.

O problema é o barulho ensurdecedor de quem prefere calar a verdade.

E enquanto aceitarmos esse barulho, centímetro a centímetro, a liberdade de imprensa será corroída até que reste apenas o eco do que um dia foi jornalismo.

Basta uma simples pesquisa na internet para perceber que este não é um caso isolado. O que não faltam são exemplos, no Brasil e no mundo, de jornalistas e comunicadores processados — alguns perseguidos judicialmente, outros intimidados física ou moralmente — simplesmente por fazerem o seu trabalho. Casos emblemáticos se repetem em diferentes estados: repórteres investigativos em Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, São Paulo e tantos outros cantos do país enfrentando processos milionários, censura velada e tentativas de silenciamento.

Em Sergipe, o caso do amigo jornalista Cristian Góes ficou marcado como um símbolo de inversão de valores: ele foi condenado criminalmente por uma crônica ficcional e, depois, condenado a pagar R$ 30 mil por danos morais a um desembargador — episódio que motivou manifestações de entidades como ARTIGO 19, Intervozes e FENAJ, que levaram o tema à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caso é citado, anos depois, como exemplo de assédio judicial contra a liberdade de expressão.

Em Alagoas, há registros que ilustram tanto a censura via tribunais quanto condenações com efeito inibidor. O jornalista Lucas Figueiredo foi condenado pelo TJ-AL em ação de danos morais movida por um juiz — decisão com indenização elevada e obstáculos processuais ao recurso, destacada pela Abraji.

E o problema é estrutural: no monitoramento Ctrl+X da Abraji, Alagoas figura entre os estados com mais pedidos de censura prévia em disputas eleitorais; mais recentemente, decisões judiciais foram usadas por atores políticos do estado para remover reportagens críticas. Isso tudo evidencia a linha tênue entre responsabilização legítima e assédio judicial que busca calar o jornalismo.

E antes que digam que estou sendo corporativista, deixo claro que eu não defendo um “salvo-conduto” para jornalistas. Ninguém deve ter carta branca para falar o que quiser, sem compromisso com a verdade e sem responsabilidade.

Palavra dita é como flecha: depois de lançada, não volta mais. E a palavra tem poder — pode construir pontes, mas também pode destruir reputações, famílias, vidas inteiras.

É por isso que eu sempre defendi, e continuo defendendo, um jornalismo ético, sério, responsável. Denunciar exige provas, exige documentos, exige cuidado. Porque falar, até papagaio fala. Mas quem se propõe a expor abusos e ilegalidades não pode se apoiar apenas em achismos ou em versões parciais. Há regras, há técnicas, há a ética que deve guiar cada linha publicada e cada palavra dita.

No entanto, nada disso justifica a perseguição. É possível — e necessário — cobrar responsabilidade sem transformar a Justiça em um instrumento de intimidação.

Porque quando o medo cala o jornalismo, cala também a democracia.

 

POR TIAGO HÉLCIAS

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