Apesar de aparecer antes do hífen, o “pronto-” não é prefixo morfológico, mas um prefixoide (palavra autônoma que, em posição inicial, intensifica a ideia de prontidão). Daí surgiu a cadeia semântica de pronto-atendimento, pronto-socorro, prontamente, pronta-entrega, etc., carregando em si o sentido de imediatidade.
“Pronto” veio do latim ‘promptus’, adjetivo de preparação. Ao ser colocado com hífen diante de substantivos que designam ajuda (socorro, atendimento), passou a evocar disponibilidade instantânea. Essa leitura ganhou corpo com a consolidação dos serviços britânicos de emergência no século XX, levada a outras áreas até fixar-se na saúde como sinônimo de “ação imediata”. Estamos testemunhando a mutação desse sentido ao longo dos últimos anos (pós-pandemia). À exceção dos cuidados urgentes (acidentes e condições críticas), nada mais em cuidados de saúde tem qualquer promessa de ação imediata. Todos os procedimentos, do agendamento à execução, estão em fila de espera.
Por outro lado, vamos assistir à migração do ‘pronto-atendimento’para o “pronto-algoritmo”. O termo Online, por exemplo, vem assumindo essa conotação de premência e imediatidade. O “pronto”, que sempre prometeu ‘solução já’, está hoje empilhado em macas espalhadas pelos corredores hospitalares. Milhões de pacientes se acotovelam nas listas de espera dos Sistemas de Saúde. A única diferença com o Brasil é que nos países de maior tradição assistencial se quantifica e qualifica a “prontidão”; aqui os números sobre ela são raros. No Reino Unido, por exemplo, quase 200 mil pacientes aguardam há mais de um ano por atendimento hospitalar (de acordo com informações do NHS, houve 2,31 milhões de atendimentos em prontos-socorros por toda a Inglaterra em setembro/2025, 7% a mais do que no mês anterior, tornando-se o setembro mais movimentado já registrado, após recordes de atendimentos em junho, julho e também em agosto).
Todavia, de repente, sem aviso prévio, o governo britânico acelera essa mutação e anuncia que o “pronto” vai migrar para a nuvem. Em setembro/2025, sem qualquer cerimônia ou constrangimento, Sir Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, anunciou o “online hospital”, batizado de “NHS OnLine”. Ele não tem paredes, nem funcionários, nem volta. A partir de 2027, o atendimento do NHS será muito mais virtual e menos presencial. Sir Jim Mackey, diretor executivo do NHS, foi exultante no lançamento do NHS OnLine: “Este é um enorme avanço para o NHS e proporcionará milhões de consultas a mais até o final da década, oferecendo uma alternativa real aos pacientes e mais controle sobre seus próprios cuidados. Os pacientes que optarem por receber seu tratamento por meio do ‘hospital online’ se beneficiarão das mais recentes tecnologias e inovações, enquanto o aumento da capacidade ajudará a reduzir a demanda e os tempos de espera”.
Starmer carrega a mais árdua cruzada de sua vida: reduzir a maior fila de espera por atendimento à saúde deste século na Grã-Bretanha, que já ultrapassou 7,6 milhões de indivíduos aguardando por atendimento hospitalar. O anúncio é a tentativa de colocar o NHS dentro da cosmologia “OnLine”, um caminho para o país alcançar a cauda de duas inovações supremas neste século: biotecnologia e cognição artificial (AI Cognware). O NHS England espera que o canal virtual possa absorver até 8,5 milhões de consultas nos três primeiros anos, aliviando a dramática pressão sobre os ambulatórios presenciais.
Na divulgação, as lideranças do NHS se apressaram em dizer: “no NHS OnLine, a consulta de especialidade continuará sendo feita por humanos; a IA entra como copiloto, triando, monitorando e redigindo notas. Só em casos muito específicos (fisioterapia, por exemplo) ela assume um papel verdadeiramente agêntico”. Poucos dos que estão atualizados com as IAs na Saúde acreditaram nisso. Afinal, como indaga o Dr. Tom Dolphin, líder da Associação Médica Britânica: “Fomos informados de que haverá médicos dedicados e designados para o serviço NHS OnLine. Estamos ansiosos para descobrir de onde virá esse pessoal extra. Os médicos já estão sobrecarregados em todo o NHS e há pouca capacidade disponível para atender a todos”.
Para dar vida ao NHS OnLine, será necessária uma navegação cuidadosa por uma rede logística complexa, onde força de trabalho, infraestrutura tecnológica e obstáculos regulatórios são questões intrincadas. O que se sabe do projeto “OnLine” ainda é insuficiente para conclusões, mas a perspectiva apresentada mostra que em 2026 haverá pilotos regionais nas especialidades de longa espera (reumatologia, dermatologia, oftalmologia). Em 2027, será o lançamento oficial do plano, objetivando realizar 2,5 milhões de consultas/ano, sendo que em 2029 será feita a integração plena da IA/Triagem e dos instrumentos de monitoramento domiciliar para doenças crônicas.
Em linhas gerais, a ideia é que pacientes encaminhados por seus ‘médicos de família’ (GPs – General Practitioners) possam agendar consultas diretamente com especialistas. Caso sejam necessários exames ou procedimentos, eles poderão ser agendados em Centros de Diagnóstico Comunitário mais próximos de casa. As etapas previstas para o fluxo do paciente: (1) Encaminhamento: o GP oferece a opção NHS OnLine para condições consideradas seguras em manejo remoto (utilização do NHS App, em formato triagem); (2) Auto-agendamento: o paciente escolhe data/hora da consulta em poucos cliques, sendo sua agenda incorporada ao prontuário digital (nacional); (3) Consulta virtual: o especialista conversa por vídeo/áudio com o paciente, vê exames já disponíveis e decide os próximos passos (utilização da Plataforma de Telemedicina do NHS, com acesso ao EHR); (4) Exames presenciais: se preciso, o App indica o centro de diagnóstico mais próximo com ‘slots livres’; (5) Seguimento: receita eletrônica, chatbot de dúvidas, monitorização por wearables/AI (automação de e-prescribing, AI-monitoring, etc.).
O que o NHS assegura é que não haverá retorno (“queimamos as pontes”). A situação sistêmica atual é gravíssima. Na Escócia, por exemplo, o jornal The Sun publicou a manchete: “NHS à beira da catástrofe, com operações escocesas AINDA não retornando aos níveis pré-pandêmicos”. Com dados oficiais, divulgados em 05 de outubro de 2025, o NHS local revelou que as consultas cirúrgicas nos 12 meses até o final de agosto/2025 foram 41 mil abaixo do mesmo período antes da pandemia. Nesse ritmo, explica a notícia, é bem provável que só em novembro de 2026 as consultas retornem à média mensal de 27 mil, observada entre setembro de 2018 e agosto de 2019 (em agosto/2025, mais de 14 mil pacientes escoceses passaram mais de oito horas em filas de pronto-socorro).
Some-se a isso a insatisfação dos médicos britânicos pela baixa remuneração e alta carga de trabalho. No Reino Unido, médicos de família (GPs) assalariados ganham em média US$ 98 mil/ano. Osespecialistas, como um Specialist Doctor, recebem cerca de US$ 130 mil/ano (os chamados Consultants chegam a US$ 141 mil/ano). Em outubro/2025, a Associação Médica Britânica (BMA) realizou pesquisa, identificando que 97% dos médicos residentes votaram por entrar em greve ainda em outubro. O General Medical Council (GMC), também em pesquisa realizada este ano, informou que “30% dos médicos tinham grande ou razoavelmente probabilidade de se mudar para o exterior no próximo ano para exercer a medicina”.
Em outras palavras, a Inglaterra passa agora a experimentar um “sandbox clínico do sistema”, onde cada login pode medir em tempo real o quão rápido a tecnologia se converte em bens públicos ou, ao contrário, em plutocracia sanitária. Se o experimento falhar, a crista biocognitiva, que hoje fascina a todos, se transformará em ressaca, ou em “coisa de endinheirados”. Mas, se calibrada à equidade, pode inaugurar uma nova métrica civilizatória: latência baixa entre a descoberta molecular e o seu benefício populacional. O NHS OnLine é baseado no“Fit for the future: 10 Year Health Plan for England”, o plano governamental para tornar o NHS o “sistema de saúde mais habilitado do mundo em IA”.
Descobertas clínicas correm pela fibra óptica, enquanto o direito de usufruí-las atravessa estradas de terra, sob o pó grosso dos velhos sistemas de saúde. Enquanto o Nobel de Medicina celebra Sakaguchi, Brunkow e Ramsdell por revelarem os linfócitos-guardiões que impedem nosso sistema imune de devorar o próprio corpo, a semaglutida (Ozempic, Wegovy, etc.) mostra potência contra diabetes 2 e obesidade, mas já esboça ganhos para fígado, rim, certos cânceres, fertilidade e talvez Parkinson e Alzheimer (Eric Topol, em seu último livro, “Super Agers”, chama os GLP-1 de “medicamento que mais muda vidas na história da humanidade”).
Todavia, o acesso a essa medicina qualificada continua se distanciando das populações mais desassistidas ou mais vulneráveis. No Brasil, por exemplo, o Mapa da Desigualdade 2024 mostra que moradores da periferia da cidade de São Paulo vivem 24 anos a menos daqueles que moram em áreas nobres. Ou seja, entre 2006 e 2023 a idade média ao morrer na cidade subiu cerca de 6 anos, porém, em ambos os extremos, manteve-se a “linha paralela” de desigualdade sanitária. Cada seringa de agonistas GLP-1 rasga o ‘continuum epidêmico’ com um salto triplo, enquanto a maioria dos pacientes permanece na plataforma de ferro/carvão à espera de que o sistema de saúde e as cadeias de suprimento anunciem, outra vez, o atraso inevitável do próximo comboio. A fratura temporal entre a ‘camada de inovação/invenção’ em Saúde e a sua ‘curva de acesso’ já ultrapassa duas décadas, podendo chegar a meio século antes de 2040.
Não há nada de muito novo no “hospital online”. Todas as nações com serviços públicos de saúde conhecem esse mapa de trás para frente. O Seha Virtual Hospital (SVH), inaugurado pelo Ministério da Saúde da Arábia Saudita em fevereiro de 2022, é um exemplo: são 224 hospitais conectados (13 provinciais), com 44 serviços especializados (29 básicos e 73 subespecialidades). Conta com 150 médicos na central de atendimento e capacidade para atender mais de 400 mil pacientes (eleito em 2024 pelo Guinness Record como o “maior hospital virtual do mundo”). Ele opera como um “hub” em Riad. O paciente é conectado por teleconsulta com equipes centrais (neurologia, cardiologia, UTI etc.). Exames de imagem e sinais vitais (IoMT ou wearables) podem ser acionados em tempo real. Resultados preliminares anunciados pelo Seha: “redução dos custos de deslocamento dos pacientes em 40%; redução das taxas de readmissão em 25% e dos dias de internação em 40%. Além disso, a sobrevida/tempo-porta-agulha em AVC obteve melhora de até 30%”.
Três hospitais chineses “totalmente digitais” também continuam nas mídias, turbinando a (superestimada) ideia de que a saúde digital é a única alternativa para melhorar o acesso da população aos cuidados, principalmente, no primeiro atendimento. O Agent Hospital (Tsinghua), lançado em abril/2025, possui 42 “médicos-agentes de IA” que cobrem 21 especialidades, com infraestrutura 100% virtual. Produz (segundo eles), até 10 mil diagnósticos/dia com 93% de acerto (accuracy). O AI Hospital 1.0 (JD Health), outro digitalíssimo aberto em setembro/2025, é conhecido como “hospital de bolso”. Possui um poderoso LLM proprietário multimodal (Jingyi Qianxun) que monitora gêmeos clínicos digitais. Seu foco é o atendimento às áreas rurais. O Internet Hospital (WeDoctor/Wuzhen), lançado em 2015, é o primeiro “hospital-app” da China, integrado a 8 mil hospitais físicos, realizando mais de 60 mil consultas/dia.
Sempre é bom lembrar que o conceito de “consulta médica” é cada vez mais subjetivo, podendo ser enganoso e tosco. A única regra que deveria valer é o contexto de “Jornada Diagnóstica” (JD), onde a ‘consulta ambulatorial pode significar muito ou nada’. Do instante em que o paciente sofre o desconforto (sintoma) até um laudo diagnóstico com pelo menos 55% de assertividade, pode haver uma ou oito consultas; é irrelevante. Os únicos parâmetros que deveriam contar na “Jornada Diagnóstica” são: (1) sua duração (tempo de espera); (2) grau de assertividade diagnóstica; e (3) redução da morbidade. Nesse sentido,seja em um hospital online, ou de concreto, no barro, ou nas palafitas amazônicas, a partir de agora, pós-IAs Notáveis (LLMs), nenhum dos itens desse cardápio independe de tecnologia cognitiva artificial.
No Reino Unido, por exemplo, havia 1.657.600 pacientes aguardando por um teste diagnóstico importante ao final de agosto de 2025. Apesar de todos os esforços e novos investimentos, isso representa um aumento de 95.500 pacientes em relação a agosto de 2024. No mesmo mês de agosto, o número total de pacientes aguardando seis semanas ou mais para um dos 15 principais testes diagnósticos era de 397.400 (24% do total de pacientes britânicos aguardam em alguma fila de espera!). Nesse sentido, a “Jornada Diagnóstica” no NHS, como no SUS ou em qualquer outro país, só vai piorar sem ajuda de Cognware (Cognição Artificial Multimodal em Saúde), como, aliás, já vem ocorrendo há anos. A tumultuada “multidão de indivíduos tentando acessar os sistemas públicos de saúde” não está comprimida na “porta de entrada”; está entre essa porta e o desfecho diagnóstico consistente, ou seja, dentro da “Jornada Diagnóstica”. Assim, esqueçam a tal “Jornada do Paciente”, uma efeméride subjetiva, diversionista e vazia para o fluxo de processos. O que importa é aquilo que se pode efetivamente medir e documentar.
Ao redor do mundo, dúzias de outros hospitais são classificados como “hospitais sem parede”, como o Mercy Virtual Care Center (EUA); o Sheba Beyond (Israel); Silverchain Home Hospital (Austrália); Metro North Virtual Ward (Austrália); NUHS@Home / MIC@Home (Singapura), etc. Neles, o leito deixa de ser grade de metal e torna-se um endereço IP. Todos já testam uma cesta de modelos de IA, atuando dentro de um ecossistema distribuído, onde (1) tele-ICU, (2) IA Diagnóstica e (3) Máquinas algorítmicas de logística se combinam para replicar (às vezes superar) o cuidado fora das paredes prediais.
O Mercy Virtual aposta em vigiar UTIs a centenas de quilômetros; o Sheba Beyond foca na reabilitação remota; a Mayo leva antibiótico IV ao sofá da sala residencial; o Silverchain cobre todo o interior australiano por meio de uma rede de alta velocidade; e o NUHS@Home injeta 5G no kit domiciliar. O cardápio clínico pode mudar, mas as premissas de Cognware são invariáveis. Ou seja, esses centros digitais não derrubam só paredes, convertem e reescrevem a geografia da internação para que o hospital passe a caber no bolso, na casa e, sobretudo, na linha de controle que vigia o paciente em tempo real.
Ensaios já estão acontecendo no NHS, como a “Southampton IBD Virtual Clinic”, parte do University Hospital Southampton (UHS). Na realidade, eleé o modelo inspirador do “NHS OnLine”. Desde 2016, é um dos 16 Global Digital Exemplars escolhidos pelo ‘Department of Health’, recebendo £ 10 milhões para servir de referência a todo o NHS. Em 2012, lançou o My Medical Record, usado hoje por mais de 300 mil pacientes e por 25 Trusts. A plataforma suporta autogerenciamento, monitorização remota, patient-initiated follow-up e coleta de PROMs – Patient-Reported Outcome Measures (instrumentos padronizados que coletam diretamente do paciente como ele percebe o próprio estado de saúde ou a mudança gerada pelo tratamento). A exemplaridade do UHS está na redução de consultas presenciais. Pacientes com ‘doença inflamatória intestinal’, por exemplo, têm acompanhamento virtual, cortando 73% das consultas ambulatoriais com especialistas e gerenciando perto de 75% dos casos em modo online (diminuindoo tempo de espera em 58%).
Se hoje o paciente corre para os ‘tijolos’ do hospital no primeiro espirro, atraído pela placa “PRONTO-SOCORRO”, nos próximos três a cinco anos correrá para o “PRONTO-ALGORITMO”. Se no século XX, o cuidado médico tinha um CEP fixo, o pronto-atendimento; no XXI, o cuidado trafega em banda larga, carrega gigabytes de dados e encontra IA no sofá domiciliar. Percebam: quando o NHS promete 4 milhões de consultas digitais ao ano, sem brita e argamassa, ele migra do corredor hospitalar pavloviano em direção à “IA Agêntica de Saúde Pessoal”, capaz de administrar, informar, gerenciar, se envolver, diagnosticar, agendar, dialogar com imagens e alertar sobre medicação, intoxicação e sintomas. O mainstream do NHS OnLine mira, sim, a redução das filas, mas seu alvo imperativo é empoderar o usuário para o bem-estar, autocuidado, saudabilidade e prevenção. Ao contrário do que possa parecer, o sistema público inglês de saúde não está apenas adicionando cognição artificial ao seu serviço; está transferindo ao paciente a outorga de cuidar de si mesmo. Mais do que tudo, o NHS OnLine objetivareescrever o contrato social da saúde, transferindo ao usuário o privilégio e a responsabilidade de pilotar a própria longevidade.
Guilherme S. Hummel
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)