A cirurgia ambulatorial representa uma transformação fundamental na prestação de cuidados cirúrgicos, desafiando paradigmas tradicionais e redefinindo o conceito de excelência médica. Longe de ser uma modalidade simplificada ou de menor qualidade, a cirurgia ambulatorial configura-se como um modelo sofisticado e altamente especializado, capaz de atender com segurança e efetividade a maior parte da demanda cirúrgica eletiva da atualidade.
Ampliando o conceito: cirurgia ambulatorial como excelência médica
É crucial desmistificar a noção de que a cirurgia ambulatorial se restringe a procedimentos simples ou rudimentares. Esta é uma visão que precisa ser amplamente superada, pois ainda existe uma confusão compreensível em torno do termo. Enquanto “ambulatorial” comumente se refere ao atendimento clínico em um ambulatório, no contexto cirúrgico, utilizamos a expressão “cirurgia ambulatorial” como um conceito herdado do inglês “Ambulatory Surgery“. Este termo designa, na verdade, um modelo altamente especializado e seguro, que permite que o paciente seja operado e receba alta, na grande maioria das vezes, em até 24h. A realidade contemporânea demonstra que até 80% dos procedimentos cirúrgicos eletivos podem ser realizados com total segurança sob este regime. Esse avanço permite que especialidades como ortopedia, urologia, ginecologia, cardiologia, gastroenterologia e outras migrem com sucesso para este modelo.
O avanço das técnicas anestésicas minimamente invasivas, aliado ao desenvolvimento de dispositivos médico-hospitalares de última geração e à integração de tecnologias como inteligência artificial e monitoramento digital, permite que procedimentos de média e alta complexidade sejam realizados em unidades cirúrgicas ambulatoriais com resultados clínicos superiores e menor incidência de complicações.
A ortopedia exemplifica essa evolução de forma notável. Procedimentos como artroscopias e artroplastias de joelho e quadril, tradicionalmente realizados em hospitais gerais com internação prolongada, hoje são executados com protocolos pós-operatórios simplificados que viabilizam a recuperação domiciliar no mesmo dia, reduzindo complicações e melhorando significativamente a experiência dos pacientes.
Desospitalização: rompendo com a mentalidade hospitalocêntrica
A mentalidade hospitalocêntrica, arraigada no sistema de saúde brasileiro, representa um dos principais obstáculos à evolução do modelo assistencial. Dados recentes evidenciam uma contradição estrutural: enquanto as internações hospitalares representam mais de 60% dos custos totais na saúde suplementar, até 80% dos casos cirúrgicos eletivos são de baixa e média complexidade, possíveis de serem realizados com total segurança em regime ambulatorial.
O modelo atual concentra operações em grandes hospitais com centenas de leitos, criando uma dinâmica paradoxal onde estruturas de grande porte exigem ocupação constante para justificar seus investimentos, frequentemente resultando em estratégias orientadas à ocupação plena dos leitos, mesmo quando isso não representa a melhor opção assistencial para o paciente.
A correlação entre os dados do Observatório ANAHP 2025 e do Observatório Anestesia de Valor 2024 revela uma tendência inequívoca: a queda na taxa de pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos hospitalares (de 55,59% para 53,34%) ocorreu simultaneamente ao aumento das anestesias em ambulatórios (de 15,7% para 21,4%). Esta migração não é casual, mas reflete uma busca consciente por eficiência, menor tempo de permanência e otimização de recursos.
A métrica equivocada: leitos versus produtividade cirúrgica
A utilização da quantidade de leitos como métrica principal para avaliar a capacidade assistencial representa uma abordagem obsoleta que compromete a racionalidade no uso de recursos e a custo-efetividade do sistema. Nas Unidades Cirúrgicas Ambulatoriais (UCAs), a métrica principal não é a quantidade de leitos, mas a capacidade cirúrgica, ou seja, a quantidade de procedimentos cirúrgicos realizados com qualidade, segurança e eficiência, do ponto de vista operacional e sob a ótica do paciente.
Esta diferença conceitual é fundamental. Enquanto hospitais de grande porte consomem investimentos que frequentemente ultrapassam centenas de milhões de reais, as UCAs oferecem estruturas mais compactas, com custo operacional significativamente menor, permitindo ampliar a oferta de serviços a populações maiores sem comprometer qualidade ou segurança.
A estrutura das UCAs favorece fluxos ágeis, reduzindo o tempo de exposição dos pacientes a infecções hospitalares. Essas unidades possuem taxas de infecção significativamente menores do que hospitais gerais, promovendo a recuperação em domicílio, contribuindo para a satisfação e segurança do paciente.
Necessidades urgentes dos sistemas de saúde
O cenário brasileiro apresenta demandas que tornam a adoção do modelo ambulatorial não apenas desejável, mas urgente. No sistema público, estima-se uma fila de espera de mais de 1,5 milhão de cirurgias, com prazos que ultrapassam 10 anos para realização dos procedimentos. Não há tanta clareza nos dados apresentados e metodologia de análise, fazendo com que os números possam ser significativamente maiores. O investimento em UCAs poderia aumentar significativamente a quantidade de procedimentos cirúrgicos realizados no circuito ambulatorial, reduzir a ocupação dos hospitais gerais públicos com demanda cirúrgica de baixa e média complexidade e abrir vagas para pacientes de alta complexidade nestes hospitais.
No setor privado, os dados financeiros de 2024 revelam um paradoxo. As operadoras de saúde registraram lucro líquido expressivo de R$ 11,1 bilhões, um aumento de 271% em comparação com 2023, com sinistralidade de 82,2% (a menor para este período desde 2018). Simultaneamente, hospitais, fornecedores e médicos enfrentam condições que podem comprometer a qualidade do atendimento, com prazos extremamente dilatados para autorização de faturamentos, glosas excessivas e privação de acesso (negativas) constantes para os beneficiários.
Esta contradição evidencia que o aumento dos lucros das operadoras pode estar associado a mecanismos de privação de acesso aos serviços, reforçando a necessidade de modelos alternativos mais eficientes e sustentáveis.
Uma realidade inexorável
Os dados convergem para uma conclusão inescapável: o futuro da atenção cirúrgica no Brasil é ambulatorial. A movimentação de mercado, com novos projetos surgindo em velocidade acelerada, somada ao crescente interesse de diversos players, entre eles médicos e investidores, indica que estamos testemunhando uma transformação estrutural irreversível.
Para médicos empreendedores, as UCAs oferecem maior autonomia e controle sobre o ambiente cirúrgico, além de representar uma oportunidade de diversificação de receita com margens operacionais atraentes, que podem variar entre 25% e 35% quando atingem a maturidade.
Para investidores, os centros cirúrgicos ambulatoriais representam uma das poucas oportunidades viáveis para grupos de pequeno e médio porte participarem do setor de atendimento cirúrgico, em um contexto em que o mercado hospitalar tradicional se tornou cada vez mais concentrado e dominado por grandes players, a cirurgia ambulatorial pode reduzir os custos globais de internação em até 60% (em comparação com a cirurgia realizada no hospital geral), enquanto apresenta taxas de mortalidade operatória comparáveis (aproximadamente 0,30%) e taxas de infecção significativamente menores, reafirmando a qualidade e segurança obtidos com este tipo de modelo cirúrgico.
A transformação em curso
O Brasil está vivenciando uma transformação que já ocorreu em diversos países desenvolvidos: a migração sistemática de procedimentos cirúrgicos para o ambiente ambulatorial. Esta não é uma tendência temporária, mas uma evolução natural impulsionada por avanços tecnológicos, necessidades econômicas e, fundamentalmente, por uma melhor compreensão do que constitui excelência em cuidados cirúrgicos.
A complementaridade entre os dados macro da gestão hospitalar e a profundidade clínica da anestesiologia reforça que estamos diante de uma mudança baseada em evidências sólidas. As UCAs não representam uma alternativa ao modelo hospitalar tradicional, mas sim a evolução natural da atenção cirúrgica na atualidade, em direção à eficiência, segurança e sustentabilidade.
O futuro cirúrgico é ambulatorial não por escolha, mas por necessidade. É uma resposta inteligente aos desafios contemporâneos da saúde, que combina excelência clínica com viabilidade econômica. Aqueles que reconhecerem e abraçarem essa realidade estarão posicionados para liderar a próxima era da medicina cirúrgica no Brasil.
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