Deixar de lucrar com a doença para ganhar com a saúde. Essa é a lógica que sustenta o modelo populacional + valor, ou capitation + valor, que começa a ganhar força no Brasil. Diferente do fee-for-service, em que prestadores são remunerados pelo volume de procedimentos, a capitação estabelece um orçamento fixo por paciente para o cuidado de uma população definida — mas com a exigência de alcançar desfechos clínicos mínimos.
O arranjo cria um alinhamento inédito entre fonte pagadora, prestador e paciente: só há ganho real quando a saúde é preservada. Desperdícios e fraudes deixam de ser estimulados, e a sustentabilidade do sistema passa a depender da prevenção, do cuidado oportuno e da coordenação assistencial.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 40% dos gastos em saúde no mundo são desperdiçados por ineficiências. No Brasil, o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) calcula perdas de R$ 28 bilhões anuais apenas na saúde suplementar, enquanto o Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que até 30% dos recursos do SUS se perdem em má gestão e políticas ineficazes.
O tema foi discutido no 2º Congresso Latino-Americano de Valor em Saúde (CLAVS). Realizado em agosto, no Rio de Janeiro, o evento reuniu especialistas do Brasil e do exterior discutiram como ampliar a adoção de modelos de saúde baseada em valor.
Alinhamento de interesses
No modelo populacional + valor, o incentivo é invertido: operadoras e prestadores passam a se beneficiar quando os pacientes estão saudáveis.
“Se a gente paga por produção, é produção que vamos ter. Se quisermos ter saúde, teremos que aprender a reconhecer saúde para poder pagar por ela”, afirma Eduardo Maia, conselheiro do Instituto Brasileiro de Valor em Saúde (Ibravs), diretor-geral do Hospital Municipal Oceânico Gilson Cantarino e sócio-fundador da SAS Soluções Avançadas em Saúde.
Para o médico e executivo em saúde Joatam Junior, o grande diferencial é o alinhamento. “O mais importante é alinhar interesses entre prestador e fonte pagadora. Quando isso acontece, todos ganham com a saúde e todos perdem com a doença. Isso resgata o propósito da medicina e garante sustentabilidade financeira”, pontua.
Resultados concretos em Niterói
Um piloto realizado em Niterói, no Rio de Janeiro, mostrou como o modelo pode transformar a experiência do paciente e a performance do sistema. A reorganização da rede cardiovascular de uma grande operadora reduziu o tempo de espera para consultas para até 24 horas — algo que surpreendeu os beneficiários e gerou uma percepção positiva.
Os resultados foram expressivos: enquanto a média da rede atingia 20 a 30 pontos no Net Promoter Score (NPS), os prestadores no modelo populacional + valor alcançaram índices de 70 a 90, comparáveis aos de empresas globais de referência.
A adesão dos pacientes também aumentou: as respostas em pesquisas de satisfação passaram de 5% para quase 20%, com centenas de milhares de participações.
Essa performance está ligada ao fim do incentivo perverso do fee-for-service, segundo Maia. “Quando o prestador deixa de ganhar pelo volume, não há mais sentido em marcar consultas desnecessárias. As agendas se abrem, o paciente percebe rapidez e pertinência no cuidado, e isso fideliza”, explica.
Sustentabilidade e desafios
Além de melhorar o acesso, o modelo permitiu corrigir distorções graves. Em Niterói, por exemplo, exames de mapeamento de varizes eram realizados de forma inadequada, gerando perdas milionárias. Apenas a correção dessa prática trouxe economia de mais de R$ 1 milhão ao ano.
O mecanismo de shared savings (compartilhamento de ganhos) foi decisivo para engajar prestadores. Só há divisão de benefícios se custos caírem sem prejuízo da qualidade assistencial. O modelo também prevê proteções financeiras contra eventos raros e de alto custo, como terapias gênicas, por meio de stop loss ou resseguro.
Mas a transição exige repensar indicadores. “Quando um prestador passa a ser remunerado em base populacional + valor, todos os indicadores do fee-for-service ficam de cabeça para baixo. Ele se concentra em casos mais complexos, e isso aumenta o custo médio por internação. Mas, paradoxalmente, a população como um todo fica mais custo-efetiva, e o sinistro cai”, esclarece Maia.
Para Joatam, esse é o divisor de águas. “O modelo obriga a reconstruir métricas. Não se mede mais o evento isolado, mas o desfecho de saúde da população”, reforça.
O futuro da saúde baseada em valor
Com maior previsibilidade de custos, eficiência clínica e foco na prevenção, o modelo populacional + valor amplia o acesso, melhora a experiência do paciente e fortalece a sustentabilidade do sistema. “Nos demais modelos ainda se ganha contra o interesse da fonte pagadora. No populacional + valor, o alinhamento é pleno. Operadora e prestador só ganham juntos — com a saúde, nunca com a doença”, resume Maia.