No palco iluminado da gestão pública, onde transparência deveria ser protagonista absoluta, Sergipe resolveu montar um espetáculo digno de Las Vegas. O enredo é sedutor: nasce a LOTESE, a loteria estadual que, sob a batuta do Banese – um banco público, convém reforçar – promete canalizar recursos para inclusão social, cultura, esporte e meio ambiente. Uma jogada genial, diriam os otimistas. Só esqueceram de avisar que, para assistir ao espetáculo, a plateia teria que colocar uma venda nos olhos.
É que, num passe de mágica que faria David Copperfield corar, os detalhes do contrato que deu vida a essa empreitada foram engolidos pelo buraco negro do “sigilo comercial”, com validade até 2045. Sim, caro leitor, vinte anos. Dois decênios de caixa-preta em um negócio que, ironicamente, vendeu a ideia de clareza e fiscalização. O truque é velho: a cartola está à mostra, mas o coelho nunca aparece.
Quando a LAI bate na porta e o Banese fecha a janela
A denúncia veio à tona pelas mãos do Mangue Jornalismo, que fez o que todo bom jornalismo faz: acionou a Lei de Acesso à Informação (LAI), uma das maiores conquistas democráticas brasileiras. Do outro lado da linha, a resposta foi um “não” categórico – e um carimbo vistoso de sigilo comercial.
A justificativa oficial? Tornar público o contrato colocaria em risco a “estratégia competitiva e a segurança jurídica” da operação. Agora, cá entre nós: que tipo de “estratégia competitiva” uma loteria pública estadual precisa proteger? Competição com o jogo do bicho da esquina? Ou, quem sabe, com a rifa beneficente da paróquia?
E o roteiro fica ainda mais curioso quando lembramos que, no lançamento em maio, a LOTESE ostentava com orgulho seus cassinos virtuais, incluindo o famigerado “jogo do tigrinho”. A polêmica foi tanta que o governo estadual recuou e retirou os jogos da plataforma. Mas a promessa de transparência, tão alardeada naquele palco, parece ter sido guardada no cofre — lacrado até 2045.
Quando o sigilo vira armadura
A LAI é clara como água de nascente: publicidade é a regra, sigilo é exceção. E, quando há exceção, ela precisa de justificativa robusta, prazo definido e classificação oficial — reservado, secreto ou ultrassecreto. Nada disso foi detalhado pelo Banese na resposta ao pedido de acesso.
Há precedentes que mostram outro caminho. A Controladoria Geral da União (CGU), por exemplo, analisou em 2023 um contrato entre o SERPRO e a Amazon Web Services. O parecer da CGU entendeu que havia dados sensíveis, mas determinou a publicação integral dos documentos com tarjas nas cláusulas estratégicas. Um equilíbrio entre sigilo legítimo e transparência obrigatória.
No caso da LOTESE, não houve esse equilíbrio. O sigilo foi aplicado de forma ampla, fechando por completo o acesso a um contrato que, por envolver recursos públicos, deveria estar disponível para qualquer cidadão. E, aqui, não se trata de julgar intenções ou insinuar irregularidades, mas de pontuar um fato: a regra legal da transparência não está sendo plenamente observada.
A caixa-preta da transparência
Não é novidade no Brasil. A “caixa-preta” é um vício histórico, uma ferramenta que atravessa gestões, partidos e governos. Seja em obras bilionárias, concessões mal explicadas ou parcerias público privadas envoltas em neblina burocrática, o sigilo muitas vezes funciona como uma muralha, dificultando o controle social.
No caso da LOTESE, há um detalhe adicional: o prazo até 2045 cria uma barreira temporal que, na prática, aposta na memória curta da sociedade. Quem fiscalizará os termos desse contrato daqui a vinte anos? Quem garantirá que os recursos, ao longo desse tempo, estarão sendo destinados exatamente às áreas anunciadas? Perguntas legítimas, que deveriam encontrar respostas claras – hoje, não daqui a duas décadas.
O humor como válvula de escape
Em meio a tudo isso, resta o humor ácido como mecanismo de defesa. Imagine um novo jogo da LOTESE, batizado de “Aposta no Sigilo”. O prêmio? Ter acesso aos contratos antes de 2045. Ou um slogan atualizado: “Banese: seu dinheiro no jogo, nossas regras no segredo”. Brincadeiras à parte, a realidade é séria: transparência não é luxo, é direito. E quando esse direito é colocado no porão, a confiança da população nas instituições desmorona.
O jornalismo como contrapeso
Esse caso reforça, mais uma vez, o papel insubstituível do jornalismo independente. que trouxe luz a um tema que poderia ter passado despercebido.
E aqui cabe uma reflexão pessoal: quem acredita no jornalismo investigativo sabe o preço que se paga por ele. Eu sei. Sempre acreditei nesse ofício que incomoda, que não aceita o silêncio como resposta, que põe o dedo na ferida, mas faz isso com responsabilidade, com fatos, com documentos, com rigor. É esse tipo de jornalismo que impede que a democracia se torne um jogo de cartas marcadas.
“No fim, a luta é por algo simples: dinheiro público não tem dono, tem destino.”
E esse destino, por lei e por direito, precisa estar à vista de todos. Porque, no negócio público, segredo não é virtude – é um obstáculo. E obstáculo bom é aquele que a sociedade, bem informada, consegue derrubar.
Confira a denúncia completa AQUI!!
Por TIAGO HÉLCIAS
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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