IA na saúde entre a regulação e o Marco Legal

A revolução digital na saúde está cada vez mais concentrada em uma fronteira regulatória sensível: os softwares médicos baseados em inteligência artificial, capazes não apenas de processar dados, mas de aprender, adaptar-se e tomar decisões cada vez mais autônomas. O desafio jurídico e sanitário, portanto, é claro: como regular tecnologias que evoluem por conta própria, sem comprometer a segurança dos pacientes e a integridade do sistema?

No Brasil, esse debate está sendo travado em duas frentes: no Congresso Nacional, com o avanço do Projeto de Lei nº 2.338/2023, que institui o Marco Legal da Inteligência Artificial, e na Anvisa, que revisita suas normativas para acomodar softwares médicos que incorporam mecanismos de aprendizado contínuo.

No âmbito regulatório, a Resolução RDC nº 751/2022, a Anvisa já considera determinados softwares como dispositivos médicos desde que tenham finalidade clínica, como diagnóstico, monitoramento ou tratamento. No entanto, essa norma ainda se aplica majoritariamente a softwares fixos, com funcionalidades estáticas validadas no momento do registro.

No entanto, o problema surge com os chamados softwares como dispositivo médico (SaMD) com IA adaptativa, que atualizam seus modelos internos conforme novos dados são inseridos. Algo especialmente comum em algoritmos de *machine learning* aplicados à imagemologia, medicina personalizada e apoio à decisão clínica.

Um exemplo concreto dessa realidade é o lançamentoocorrido em maio deste ano de 2025da primeira tomografia computadorizada com inteligência artificial desenvolvida para o mercado da América Latina. O equipamento foi projetado para otimizar imagens com menor dose de radiação, aumentar a velocidade de processamento e permitir atualizações contínuas via software. É uma abordagem que evidencia que a IA médica deve ser regulada com base em parâmetros dinâmicos, transparentes e adaptáveis à evolução dos sistemas.

O Projeto de Lei nº 2.338/2023 representa um avanço na tentativa de estruturar a atuação da inteligência artificial no Brasil. Entre seus princípios fundamentais, destacam-se: governança algorítmica e transparência dos sistemas automatizados; gestão de riscos e responsabilização objetiva dos agentes envolvidos; proteção de dados sensíveis, em conformidade com a LGPD; segurança, rastreabilidade e explicabilidade das decisões automatizadas.

Esses princípios guardam relação direta com os desafios regulatórios enfrentados pela Anvisa, sobretudo quando se trata de softwares que modificam seu comportamento ao longo do tempo. Isso impõe a necessidade de sinergia normativa entre o marco legal geral e os regimes específicos da saúde.

É nesse contexto que, no âmbito regulatório, a revisão da RDC nº 657/2022 ganha destaque. A norma, atualmente em processo de atualização, visa aprimorar a regulação dos SaMDs à luz das novas tecnologias digitais e da IA.

As propostas em discussão incluem: a introdução dos conceitos de “software adaptável” e “software específico”; exigência de relatórios detalhados de validação, contendo técnica de IA, dados de treinamento e origem das bases utilizadas; definição de regras para softwares desenvolvidos internamente por instituições de saúde; instruções de uso claras e imagens de interface obrigatórias para fins de rastreabilidade. Além disso, a adoção do Plano de Controle de Alterações Predeterminadas (PCCP), modelo já adotado por autoridades regulatórias internacionais.

A revisão da RDC nº 657/2022 representa um passo importante de harmonização internacional e um avanço técnico-jurídico na consolidação da governança regulatória sobre softwares com inteligência artificial adaptativa. A proposta reforça o papel da Anvisa como protagonista no equilíbrio entre segurança sanitária e inovação.

Em linhas gerais, a proposta é permitir que certas atualizações do algoritmo sejam previamente autorizadas, desde que devidamente documentadas, testadas e auditáveis, o que exige governança contínua e validação recorrente.

Pois bem. Ainda que o Projeto de Lei nº 2.338/2023 represente um marco importante e as atualizações normativas da Anvisa, como a revisão da RDC nº 657/2022, apontem avanços concretos na adaptação da regulação às novas tecnologias, é fato que o ritmo da inovação tecnológica, especialmente no campo da inteligência artificial médica, supera, em muito, a capacidade de resposta do arcabouço legal e regulatório tradicional.

Nesse cenário, a adoção de um modelo de governança baseado em princípios estruturantes como: precaução, transparência, rastreabilidade, segurança e responsabilização, revela-se a abordagem mais adequada para lidar com as incertezas e complexidades da IA adaptativa. Ao invés de tentar prever tecnicamente cada inovação, o sistema regulatório deve ser capaz de responder com agilidade, consistência e foco na mitigação de riscos, garantindo a proteção da saúde pública sem inviabilizar o progresso científico.

A governança por princípios oferece a flexibilidade necessária para interpretar, avaliar e validar novas tecnologias conforme surgem, preservando a integridade do sistema sanitário e assegurando que a inovação ocorra dentro de limites éticos e jurídicos bem definidos. Nesse contexto, regular não significa travar, mas sim orientar a inovação com responsabilidade e previsibilidade, pilares fundamentais para a construção de uma saúde digital segura e eficaz.

Fonte: Saúde Business

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