Dados integrados: o futuro da oncologia personalizada

O câncer permanece como um dos maiores desafios da medicina moderna, responsável por mais de 10 milhões de mortes por ano no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a estimativa do Instituto Nacional de Câncer (Inca) é que mais de 700 mil novos casos surjam a cada ano até 2025, cenário que pressiona sistemas de saúde e evidencia a urgência de novas abordagens.

Nesse contexto, a oncologia personalizada começa a redesenhar protocolos de cuidado ao utilizar dados genômicos, clínicos e tecnológicos para indicar terapias mais precisas, reduzir desperdícios e ampliar as chances de sobrevida.

O poder dos dados no cuidado ao paciente

Mais do que um avanço científico, trata-se de uma transformação na forma de organizar e integrar informações de pacientes. Da coleta de dados genéticos ao uso de dispositivos vestíveis, diferentes frentes vêm se consolidando no Brasil, ainda que o desafio da interoperabilidade limite a velocidade do progresso.

A oncologia personalizada tem se destacado como possibilidade de tratamento efetivo e melhoria da qualidade de vida ao mapear tumores com base em seu perfil genético ou molecular, e não apenas pela localização ou tipo histológico. Esse avanço é potencializado pela integração de múltiplas fontes de informação — dados clínicos, genômicos, de estudos clínicos e até de dispositivos remotos — que estão transformando a prática oncológica no Brasil e no mundo.

Nos Estados Unidos e na Europa, já existem redes colaborativas que reúnem dados de milhões de pacientes para acelerar pesquisas, otimizar protocolos terapêuticos e ampliar o acesso a terapias-alvo e imunoterapias. No Brasil, o movimento ainda é incipiente, mas vem ganhando força.

Um marco importante nesse processo foi a criação da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma oficial do Ministério da Saúde para a interoperabilidade de dados clínicos no país. A RNDS já permite o compartilhamento de informações entre diferentes pontos da rede de atenção, incluindo prontuários eletrônicos, exames laboratoriais e de imagem, além de dados de dispositivos e laudos estruturados.

Na oncologia, a plataforma tem iniciativas específicas voltadas ao aprimoramento do cuidado, como a integração do Sistema de Informação do Câncer (SISCAN), que agora passa a enviar digitalmente requisições e laudos de exames citopatológicos, em parceria com o Inca e universidades federais. Também estão em curso negociações com hospitais públicos para digitalizar e disponibilizar laudos anatomopatológicos.

Na avaliação de Marcon Censoni Lima, head do Departamento de Medicina Hospitalar do A.C.Camargo Cancer Center, o Brasil tem avançado de maneira consistente, especialmente em grandes centros de referência. “Na nossa instituição, desempenhamos um papel ativo nesse movimento, ao promover a integração de dados clínicos, genômicos e de pesquisa. Contamos com um dos registros hospitalares de câncer mais abrangentes do mundo, que subsidia análises nacionais e internacionais”, comenta.

O desafio da falta de interoperabilidade

A falta de interoperabilidade persiste como obstáculo principal para que a medicina personalizada avance em passos mais largos — dados ainda estão dispersos em diversos sistemas não integrados. Instituições de referência relatam que a saída tem sido adotar soluções de integração em camadas, utilizando conectores baseados em padrões como HL7 e FHIR para interligar sistemas distintos. Quando não há padrão disponível, entram em cena gateways e até curadoria manual, de forma a garantir que equipes médicas tenham acesso a prontuários mais completos e integrados. “Mesmo diante das limitações técnicas, conseguimos discutir casos complexos de maneira mais ágil e embasada”, explica Lima.

Embora não exista um padrão único de comunicação entre sistemas de prontuário, laboratório, patologia e genética, a Oncoclínicas conseguiu criar um Data Lake, onde todos esses dados são carregados. “A partir daí, há um processo de harmonização e unificação de paciente único, que garante consistência às informações. Esse trabalho acontece no back-end, de forma invisível para o usuário, e permite que equipes médicas tenham acesso a registros integrados”, conta Rodrigo Dienstmann, diretor da OC Medicina de Precisão da Oncoclínicas&Co.

Além disso, a instituição está digitalizando exames realizados fora da rede, como análises laboratoriais e de imagem. Nesses casos, pacientes, médicos ou concierge podem enviar os documentos via aplicativo ou diretamente para a clínica. Um sistema de inteligência artificial extrai e organiza os dados, assegurando qualidade antes da incorporação ao Data Lake.

Outro exemplo de instituição que tenta diariamente vencer as barreiras dos dados fragmentados é o Hospital Pequeno Príncipe, que busca integrar dados clínicos, genômicos e de biobanco para impulsionar diagnósticos precisos e terapias personalizadas no tratamento do câncer infantil.

“É um grande desafio. Como todos os pacientes são registrados no prontuário eletrônico, procuramos anexar os dados clínicos e os resultados dos exames, incluindo os de sequenciamento genético, neste mesmo prontuário”, explica Ana Paula Kuczynski Pedro Bom, médica oncologista pediátrica do Serviço de Oncologia e Hematologia.

Desde 2006, são desenvolvidos projetos em genômica, oncogenética, big data e inteligência artificial no Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe. Em 2018, a instituição inaugurou o Centro de Diagnóstico Avançado, que reúne o Laboratório Genômico e um biobanco com mais de 230 mil amostras biológicas armazenadas.

Precisão diagnóstica e terapias mais assertivas

O impacto clínico da integração de dados provenientes de diversas fontes é direto: maior precisão diagnóstica, capacidade de prever resposta a terapias específicas, monitoramento da evolução do câncer em tempo real e decisões terapêuticas mais assertivas. Tumores de pulmão, mama, colorretal e ginecológicos estão entre os que mais se beneficiam.

“Temos obtido avanços relevantes, como a redução de retrabalho, a prevenção de perdas de material e a melhoria na seleção de terapias, em especial das terapias-alvo, que apresentam maior custo-efetividade. Atualmente, conseguimos indicar com maior assertividade terapias-alvo ou imunoterapias em tumores de pulmão, mama, colorretal e ginecológicos, por exemplo. Isso possibilita que o paciente receba a medicação mais adequada no momento oportuno, com base em biomarcadores confiáveis, além de ampliar o acesso a ensaios clínicos alinhados ao seu perfil”, comenta Lima.

O executivo relata que, com a adoção de protocolos estruturados e checklists no fluxo assistencial, aumentou a taxa de realização de testes moleculares. Isso resultou em maior identificação de biomarcadores e, consequentemente, maior número de pacientes com indicação clara para terapias-alvo. Segundo ele, a mudança impacta diretamente na adesão aos tratamentos e nos desfechos clínicos.

No Pequeno Príncipe, apesar dos desafios, os resultados começam a aparecer. Pacientes com neoplasias raras que não respondiam bem a cirurgias ou quimioterapia convencional passaram a ter respostas significativas após a identificação de mutações específicas pela biologia molecular e a indicação de terapias-alvo personalizadas.

“O número de casos ainda é pequeno, mas os ganhos são muito relevantes”, destaca a equipe. “Além disso, dados de mundo real já vêm influenciando condutas clínicas, ajudando a refinar protocolos e trajetórias terapêuticas”, pontua Ana Paula.

Dados de mundo real redefinem condutas

Os dados de mundo real revelam como terapias e condutas funcionam no cotidiano, em populações e cenários diversos, que têm contribuído cada vez mais para a assertividade dos tratamentos.

Na Oncoclínicas, o diretor conta que essas informações têm influenciado a prática clínica e a tomada de decisão, especialmente quando analisados de forma agregada e coletiva. “Coletamos informações dos pacientes, retiramos os identificadores e, a partir daí, conseguimos avaliar tendências de incidência, padrões de tratamento e resultados.”

Esses dados permitem ainda compreender padrões de tratamento como: quantos pacientes iniciam terapia em estágio metastático, quais opções são mais escolhidas como primeira linha, quantos avançam para linhas subsequentes e como essas trajetórias impactam desfechos clínicos e custos.

Nesse cenário, os dispositivos vestíveis vão ganhando destaque. No A.C.Camargo, eles já monitoram parâmetros como frequência cardíaca, saturação de oxigênio, temperatura periférica, atividade física, sono e peso. Aplicativos complementam o acompanhamento ao coletar sintomas relatados — dor, fadiga, náusea — e permitir registro fotográfico de feridas e lesões cutâneas, recurso que deve ganhar novas aplicações com apoio da inteligência artificial.

Na Oncoclínicas, um app concentra funções operacionais (pré-check-in, agendamento, telemedicina, chat médico-paciente) e clínicas. Os dispositivos vestíveis, por sua vez, medem parâmetros como marcha, passos, frequência cardíaca, saturação de oxigênio, sono e peso. Essas informações revelam se o paciente é mais funcional ou mais frágil, o que influencia diretamente na escolha do tratamento quimioterápico e no monitoramento de toxicidades.

Notificações automáticas já são uma realidade por lá: se um wearable detectar febre após quimioterapia, o sistema pode acionar uma conduta imediata para prevenção de complicações graves.

CRIO amplia fronteiras da medicina personalizada

A integração de dados clínicos e genômicos tem se consolidado como eixo estratégico para avançar em medicina personalizada e acelerar descobertas em imunoterapia. No Brasil, o Centro de Pesquisa em Imuno-Oncologia (CRIO), sediado no Hospital Israelita Albert Einstein, atua em diferentes frentes de colaboração.

O centro conecta dados clínicos e biológicos de pacientes com câncer em projetos multicêntricos, apoiados por parcerias público-privadas como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a farmacêutica GSK, além de envolver instituições como o A.C.Camargo Cancer Center e o Hospital Municipal Vila Santa Catarina.

“Todo esse esforço só é possível graças à colaboração de pacientes voluntários, que permitem transformar conhecimento em avanços concretos para a prática médica”, avalia Kenneth Gollob, chefe do Laboratório de Imuno-oncologia Translacional do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor do CRIO.

Em nível internacional, os pesquisadores do CRIO participam de redes de colaboração voltadas à integração de informações genômicas, imunológicas e clínicas.

Segundo Gollob, as linhas de pesquisa mais dependentes da integração de dados estão relacionadas à descoberta de biomarcadores de resposta e resistência à imunoterapia, ao desenvolvimento de novos alvos terapêuticos e à caracterização de perfis imunológicos associados à progressão tumoral.

“Já foi possível identificar biomarcadores promissores em melanoma e câncer de pulmão, além de avançar na estratificação de pacientes para diferentes regimes de tratamento. Mais recentemente, uma parceria com a Drª Livia Eberlin, do Baylor College of Medicine, nos Estados Unidos, e a MSPen, passou a integrar dados de espectrometria de massas com informações clínicas, patológicas e moleculares, com o objetivo de apoiar decisões intraoperatórias e tornar o diagnóstico tumoral mais preciso.”

No aspecto metodológico, a integração é viabilizada por pipelines que harmonizam dados estruturados de prontuários eletrônicos com resultados laboratoriais, exames de imagem e perfis genômicos/ômicos. Esses dados, processados em plataformas seguras, permitem análises multiômicas e acompanhamento longitudinal de pacientes. “A proposta é transformar a complexidade desses dados em conhecimento clínico aplicável, resultando em opções terapêuticas personalizadas e prognósticos mais precisos”, afirma Gollob.

Apesar dos avanços, a falta de interoperabilidade entre sistemas hospitalares e de pesquisa segue como desafio no CRIO. Para superá-lo, têm sido desenvolvidas camadas de integração e padronização de dados baseadas em ontologias médicas e formatos internacionalmente reconhecidos. “A parceria com equipes de TI hospitalar também é essencial para viabilizar a anonimização e a exportação de dados de forma compatível com ambientes de pesquisa. Ainda que persistam barreiras, a evolução regulatória no Brasil e a atuação em redes internacionais têm acelerado a construção de soluções,” aponta o especialista.

O desafio no uso de dados

A integração de dados é desafiadora porque o processo é multimodal: não é apenas um dado que gera insights ou evidências para a tomada de decisão, mas sim a combinação de múltiplas informações.

Dienstmann comenta que nem todos os dados estão harmonizados ou acessíveis em tempo real no Data Lake da sua instituição. Muitas vezes, um dado chega dois ou três dias depois da geração, e isso não atende à maior parte dos usos, que exige rapidez no acesso à informação.

Outro ponto é a fragmentação da assistência. Nem tudo é feito em um único hospital ou centro. Exames podem ser realizados em clínicas e laboratórios diferentes, e nem sempre estão disponíveis de forma integrada para a Oncoclínicas.

Além disso, Lima aponta ainda a falta de padronização da informação, já que muitos laudos ainda são emitidos em texto livre; a interoperabilidade restrita entre sistemas; as exigências de governança de dados em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); a necessidade de liberação de dispositivos vestíveis pelo Inmetro e os custos de infraestrutura.

A esses desafios, somam-se ainda outros, citados por Ana Paula, como dados clínicos incompletos informados pelos próprios pacientes ou seus acompanhantes, bem como escassez de profissionais especializados em bioinformática.

Apesar disso, o balanço é otimista. “Cada avanço na integração se traduz em melhorias concretas no cuidado oncológico, com diagnósticos mais precisos e maior adesão a terapias personalizadas”, diz Lima.

Dienstmann acredita que o grande desafio para o futuro é integrar os dados vindos de diversas fontes de maneira eficiente, a ponto de permitir o desenvolvimento de algoritmos que realmente auxiliem a tomada de decisão clínica, seja para prevenir uma toxicidade, evitar uma internação ou oferecer o melhor cuidado ao paciente e sua família.

“Podemos imaginar algo como uma ‘loja de aplicativos’ dentro do prontuário eletrônico no futuro, onde cada aplicativo reuniria dados específicos, da história clínica, exames laboratoriais, informações moleculares e genéticas e entregaria à equipe multiprofissional (médicos, enfermeiros, nutricionistas, farmacêuticos) recomendações já integradas. Essas recomendações poderiam indicar, por exemplo, a probabilidade de resposta a um tratamento ou o risco de toxicidade com outro. Esse tipo de sistema de suporte à decisão clínica ainda está em fase embrionária, mas é para onde estamos caminhando”, explica o diretor.

Os avanços na integração de dados clínicos, genômicos e de dispositivos vestíveis seguem abrindo novas possibilidades na oncologia personalizada, mesmo diante de desafios técnicos e operacionais. Cada vez mais, inteligência dos dados, interoperabilidade e personalização pautam o cuidado oncológico no Brasil.

Fonte: Saúde Business

Compartilhe este artigo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *