SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Depois de 128 anos de história, a Academia Brasileira de Letras acaba de eleger a primeira mulher negra para sentar em uma de suas 40 cadeiras. Ana Maria Gonçalves, autora do romance “Um Defeito de Cor”, foi eleita na tarde desta quinta-feira para a vaga antes ocupada pelo linguista Evanildo Bechara.
A escritora mineira de 54 anos foi a primeira a se inscrever para cadeira número 33 após a sessão da saudade de Bechara, no dia 27 de maio, um sinal de como a candidatura foi bem costurada dentro da ABL. Ela já largou à corrida como favorita.
A autora levou 30 votos contra um da escritora indígena Eliane Potiguara. Havia outros 11 concorrentes: Ruy Lobo, Wander Lourenço de Oliveira, José Antônio Hartmann, Remilson Candeia, João Calazans Filho, Célia Prado, Denilson Marques da Silva, Gilmar Cardoso, Roberto Numeriano, Aurea Domenech e Martinho de Melo.
Gonçalves atendeu à reportagem em meio à euforia da comemoração, durante uma recepção na casa de Roberta Machado, sócia de sua editora, a Record. A eleição, segundo a nova imortal, pode ser lida como o sinal de uma instituição mais afinada à diversidade real do Brasil.
“Pode estar mandando um recado de que a Academia está mais aberta a repensar o trato institucional de uma língua portuguesa mais inclusiva, pensando na riqueza que os africanos e indígenas incorporaram à nossa língua mátria”, aponta ela.
A escritora diz que, antes de se candidatar, refletiu sobre as razões que a impeliam a a ocupar uma vaga -foi a primeira vez que Gonçalves tentou ingressar na Casa de Machado.
“Pensei que posso levar para a ABL um público leitor que não se via representado, ainda, em grande parte da literatura que se produz lá dentro. Tenho muita vontade de agir institucionalmente em prol de novos escritores e novas tecnologias de saber, incorporando a oralidade e a escrevivência, por exemplo, que são modos muito nossos de fazer literatura.”
A obra da autora é considerada um ponto de virada na literatura negra brasileira. “Um Defeito de Cor”, publicado pela Record em 2006, foi um marco na elaboração literária da história do Brasil, com olhos voltados à diáspora africana e aos efeitos da escravidão como modulares da identidade do país.
“Gonçalves é uma das responsáveis, no Brasil, pelo encontro mais fértil entre as autoras negras e o gênero romance”, afirma a crítica literária Fernanda Miranda, que estudou em seu doutorado a maneira como a produção de romancistas negras se expandiu a partir do ano de publicação da obra-prima da mineira.
O romance, aliás, ficou em primeiro lugar em lista recente da Folha que convidou 101 especialistas para escolher os melhores livros de literatura brasileira do século 21.
Segundo Miranda, que é professora da Universidade Federal da Bahia, o livro “amplia nossa concepção de África como um território multifacetado, complexo, vibrante, porque é formulado pelo conflito e não pela idealização”. Da mesma forma, “traduz de forma exemplar” como o Brasil é um país que está em constante movimento entre diferentes culturas.
O romance histórico, que já vendeu 180 mil exemplares e inspirou de exposições de arte a enredo de escola de samba, acompanha ao longo de 950 páginas a vida da narradora Kehinde, desde seu sequestro na África, passando pela escravização no Brasil até a busca por seu filho perdido -a personagem tem traços inspirados na vida de Luiza Mahin, tida como mãe do advogado abolicionista Luiz Gama.
Gonçalves não voltou a escrever outro romance nos 19 anos que se seguiram ao lançamento da obra, tendo se dedicado principalmente a dramaturgia e roteiros de audiovisual -em entrevista à Folha de S.Paulo, ela disse que ficou “muitos anos sem conseguir produzir absolutamente nada porque tinha medo de falhar” após o sucesso de “Um Defeito de Cor”.
“É um acontecimento histórico”, diz Fernanda Miranda sobre a eleição da escritora à ABL. “A presença de autoras negras é uma realidade no sistema literário brasileiro. O mercado editorial já sabe, a universidade está aprendendo, a crítica literária tem se revelado menos cega do que já foi. Instituições tradicionais como a ABL demoram ainda mais tempo para perceber que literatura é movimento, não algo estático.”
A eleição, segundo ela, sinaliza um passo da Academia na direção de um entendimento menos restrito da literatura. “Ou seja, ganha mais a ABL. É ela que se enriquece ao trazer para seu convívio uma das autoras mais prestigiadas da língua portuguesa no século 21.”
É curioso que outra dessas autoras, hoje amplamente reconhecida como ponta de lança da literatura nacional, foi preterida pela mesma instituição há apenas sete anos.
Conceição Evaristo foi protagonista de uma rumorosa candidatura, em 2018, que postulava que ela passasse a ocupar a vaga de Nelson Pereira dos Santos. A escritora teve apenas um voto na ocasião, e o cineasta Cacá Diegues foi eleito -hoje a cadeira é ocupada pela jornalista Míriam Leitão, escolhida em abril.
A candidatura de Conceição, que partiu menos dela que de um movimento público que incluiu um abaixo-assinado com 20 mil assinaturas, foi percebida pela Academia como intimidação. Os imortais têm uma expectativa de que o postulante passe por um certo ritual, que envolve a manifestação do interesse na vaga, a aproximação aos acadêmicos e o envio de livros para os votantes.
Se há sete anos a escritora não cumpriu esses protocolos -e não poupou a ABL de críticas desde então-, Gonçalves fez tudo isso. E diz que a autora de “Ponciá Vicêncio” foi mal orientada na época. “Eu gostaria de esclarecer esse mal-entendido agora. Mas, de todo modo, a candidatura dela foi extremamente vitoriosa para fazer a Academia se ver como um lugar que não tinha diversidade.”
Agora se arma o terreno para uma possível nova tentativa de Conceição, apadrinhada por membros mais recentes da instituição, após o pioneirismo ser quebrado por Gonçalves. E de fato, os últimos anos viram a Academia se engajar em alguns ineditismos, como o de Ailton Krenak, primeira pessoa indígena empossada em uma cadeira, no ano passado.
O compositor Gilberto Gil se tornou o raro homem negro fazendo companhia ao imortal Domício Proença Filho na instituição fundada por Machado de Assis. E a presença de mulheres aumentou de leve com Míriam Leitão e Lilia Schwarcz -mas, com Gonçalves, elas são apenas 13 em toda a história da ABL.
Por outro lado, houve a inclusão de acadêmicos do perfil masculino e branco que sempre foi regra, a exemplo do advogado José Roberto de Castro Neves e do escritor Edgard Telles Ribeiro, para citar dois dos últimos meses.
“Essas eleições recentes têm cumprido um importante papel social ao reacenderem um debate público mais amplo sobre a histórica falta de representatividade de mulheres, negros e indígenas em espaços de poder, suscitado justamente pela candidatura de Conceição Evaristo”, diz a professora Michele Asmar Fanini, que pesquisa a instituição pelo recorte de gênero e escreveu “Fardos e Fardões”.
O momento, diz ela, traz oportunidade de refletir sobre a “lógica arbitrária e parcial” do cânone até aqui e “identificar os mecanismos de exclusão que nele operam, fruto de uma engenhosa e intrincada construção social”.
A escritora Cidinha da Silva diz que “não se pode restringir a presença de Ana Maria Gonçalves nesse pleito ao fato de ser uma mulher negra, embora seja importante ter gente negra em todos os lugares de poder, mando e decisão”. Gonçalves foi convidada a se candidatar, segundo ela, “porque é uma das maiores escritoras vivas do Brasil”.
A crítica Fernanda Miranda diz estar mais numa posição de observação cautelosa que de pura celebração.
“É importante estarmos alertas para não confundir um ato de auto-resgate de uma instituição tida como falida por muitos com um ato de reconhecimento verdadeiro. Foi Conceição Evaristo quem disse, o importante não é ser o primeiro ou a primeira, o importante é abrir caminhos. Vamos observar os próximos passos para saber se Ana Maria e Krenak vão figurar como elementos únicos, como símbolos de ausências, ou se a ABL está apontando para novos contornos.”
Fonte: Notícias ao Minuto